terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Michael Haneke e "Amor"


Nascido em Munique de família austríaca, Michael Haneke é um homem que ri. Pode soar estranho constatar isso de um artista que já nos ofereceu trabalhos tão duros no cinema, muitas vezes experiências realmente perturbadoras de se acompanhar. Mas Haneke tem sorrido cada vez mais desde quando A Fita Branca (2009) se tornou seu projeto mais premiado em toda a carreira – incluindo a Palma de Ouro no Festival de Cannes. No último domingo (em maio de 2012), novamente no evento francês, Haneke roía as unhas enquanto, sentado no Grand Theatre Lumiére, acompanhava a premiação da 65ª edição do festival. Quando Amor foi anunciado pelo italiano Nanni Moretti, presidente do júri, como o ganhador da Palma deste ano, o austríaco renovou o sorriso e não o largou mais.

Amor aparenta ser uma quebra na forma estética e narrativa de Michael Haneke. Na verdade, pode ser um tipo de continuidade inesperada numa trajetória marcada por trabalhos de crueza exemplar, em que a representação da violência e os limites humanos são testados a cada nova situação apresentada. O diretor se tornou efetivamente conhecido de boa parte do público no Brasil com a repercussão de A Professora de Piano (2001), no qual Isabelle Huppert encarnava uma mulher sexualmente reprimida no meio de relações transtornadas com a mãe opressora e um aluno por quem ela se sentia atraída. O tom e a visão de mundo do filme, próximos de um pesadelo filmado como realidade, tornou-se a referência de Haneke para entusiastas e detratores. Dali em diante, cada longa-metragem era aguardado como a nova pancada do cineasta.

E eles vieram aos montes: Tempos de Lobo (2003), Caché (2005), Violência Gratuita US (2007), A Fita Branca (2009). Todos confirmaram elementos comuns na filmografia de Haneke: a brutalidade filmada fora de quadro, o uso do som como elemento de perturbação, a inserção de imagens de vídeo como propulsores da narração, o profundo rigor nos enquadramentos e em longos planos, a personalidade gélida dos protagonistas, a visão amarga e política para o universo retratado. Um enorme culto se criou em torno de Haneke, especialmente com a descoberta de filmes dos anos 1990 fundamentais para que seu modelo de cinema fosse construído – casos da versão original de Violência Gratuita (1997), já há anos um cult de locadora, e pelo mosaico armado no inquietante 71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso (1994).

A exploração contínua e crescente de universos, ambientações e olhares através do filtro do cinema pode atingir ápices tamanhos que o desafio posterior de um artista é abandoná-los ou driblá-los. Michael Haneke deve ter se colocado nessa situação. Ninguém (nem realizador nem espectador) sai incólume de uma experiência como A Fita Branca, goste-se ou não do filme. O austríaco pareceu ter alcançado o máximo impacto do que vinha desenvolvendo sobre basicamente tudo que sempre o mobilizou. Como não esgotar a si mesmo? Do que mais falar se já refletiu o próprio nascedouro do mal e sua ascensão numa Europa abalada por guerras e ideologias?

A solução de Haneke foi voltar ao essencial. Amor não é necessariamente uma quebra dentro de suas obsessões artísticas, mas é certamente um “respiro”. Isso nem de longe significa que o diretor deixe de lado a crueza e o choque como catalisadores. Porém, o cineasta o faz com maior carga de ternura, de maneira pouco vista anteriormente no que conhecemos dele.

A afetuosidade já se inicia na escalação do elenco, todo formado por ícones do cinema francês. Jean-Louis Trintignant, 81, prêmio de melhor ator em Cannes por Z (1969), estava afastado das telas há 14 anos, em dedicação exclusiva ao teatro. Emmanuelle Riva, 85, foi eternizada por Alain Resnais em Hiroshima Mon Amour (1959). Para completar, surge discretamente em cena Isabelle Huppert, 59, imagem simbólica de uma geração posterior e aqui em terceira colaboração com Haneke.

Na coletiva de imprensa após a primeira sessão de Amor no Festival de Cannes, o diretor entoou: “Eu não quis falar sobre a sociedade em si”. E completou: “Não escrevo filmes para mostrar alguma coisa. Uma vez que você alcança uma certa idade, tem de lidar com o sofrimento de alguém que ama. Isso é inevitável, e na minha vida também”. A escolha por retratar um casal idoso trancado num apartamento foi, portanto, fruto de deliberação consciente e, pode-se dizer, necessária ao cineasta. Aos 70 anos, Haneke pode estar entrando naquela fase pela qual colegas como Clint Eastwood, Manoel de Oliveira e Woody Allen já avançam: a reflexão sobre a morte e a busca pelo entendimento do momento derradeiro do homem.

No caso de Haneke, é interessante que ele tenha passado 25 anos mostrando filmes em que a morte era a questão fundamental (sempre como consequência de sociedades doentes) e, em Amor, ele a aponte como a caminhada natural do ser humano. O filme reflete muito claramente esse olhar de aceitação e resignação sobre algo tão incontrolável quanto inevitável.

Trintignant e Riva formam o casal companheiro que, num certo dia, vê-se destroçado por uma doença que a acomete. A primeira manifestação da anomalia em Riva é filmada como um primor de contenção e tensão. A mulher simplesmente pára de se mover, de pensar, de falar; seu olhar se esvazia, a atenção desaparece, e nada do que o marido faz é capaz de devolvê-la à realidade. Algo está muito errado, nos avisa o filme. Estaremos sempre ao lado de Trintignant, acompanhando cada passo de sua adesão completa e irrestrita aos males da esposa. Seu corpo e o dela, ambos limitados pela idade, vão remodelar uma relação que ganhará outra maneira de existir – de fato, a única maneira possível. Como o cinema de Haneke, talvez?

Ela é um corpo defeituoso e paralisado; ele é o corpo ativo, resignadamente em busca de algum conforto para a companheira. A certa altura, ela exige dele a promessa de que jamais a internará num hospital. Dentro do apartamento, portanto, ambos tentarão seguir adiante, sem esperanças para além da inevitabilidade da partida. “Eu levanto, dou algo para ela comer e beber, dou banho, depois vamos dormir. E vai ser assim até não ser mais”, afirma o marido, em aceitação quase harmônica com a despedida da mulher.

Filmando em ambiente fechado, Michael Haneke se permite explorar, usando como limites do quadro a arquitetura de portas e paredes, as possibilidades de movimentação e o que também vem de fora do que está sendo mostrado. O protagonista, quando sozinho, caminha pelos cômodos e carrega consigo, na imagem, a presença da mulher. Sabemos sempre que ela está por ali, em algum lugar, incapacitada de agir, muitas vezes murmurando em desespero “dor, dor, dor”. Os encontros com um pombo, momentos simbólicos do filme, são a representação mais simples e certeira para um olhar muito duro que o austríaco imprime ao drama. Haneke pode estar reiniciando seu ciclo artístico, mas permanece o autor que todos conhecemos. Que o espectador, portanto, não espere facilidades.

* Originalmente publicado no jornal "Zero Hora" (RS) em junho de 2012

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Leonor Silveira


No fim de sua adolescência, a estudante portuguesa Leonor Silveira foi acompanhar uma amiga num teste de elenco para um filme. Chegando ao local, ela foi abordada por alguém que a perguntou se ela mesma, Leonor, aceitaria arriscar um papel em outro longa-metragem sendo feito. Chamava-se "Os Canibais", musical bastante heterodoxo dirigido por um tal Manoel de Oliveira. Leonor fez o teste (cantando apenas "parabéns pra você"), foi aprovada e participou do filme. Ela tinha 17 anos.

Exatamente hoje (27-10-2012), Leonor Silveira faz aniversário. Completa 42 anos de idade. Desses, ela passou 25 trabalhando em outros 18 filmes de Manoel de Oliveira desde 1988, quando estreou "Os Canibais". É absolutamente impossível pensar no cinema do centenário mestre português (ele faz 104 anos em novembro) sem vincular na mente o rosto, o corpo, o olhar e a expressividade de Leonor, elementos tão caros a alguns dos instantes mais sublimes já filmados pelo cineasta.

A atriz esteve na 36ª Mostra de Cinema de São Paulo ao longo desta semana, promovendo a exibição de "O Gebo e a Sombra", novo filme de Manoel no qual ela é uma das personagens - ao lado de nomes como Claudia Cardinale, Jeanne Moreau e Michael Lonsdale. Leonor voltou para Lisboa ontem, onde passaria o aniversário com o marido e os filhos. Leia entrevista.

Houve algum momento, lá no início da sua carreira, em que você percebeu que a parceria com Manoel de Oliveira seria uma relação artística tão duradoura e intensa?
O Manoel é tão grande, tão imenso, que você nunca pensa que as coisas vão perdurar. Todos os convites que se recebe para um trabalho com ele é uma honra, é mais um grau. Nunca previ que fôssemos chegar a tanto tempo e tantos filmes juntos. Até porque eu sempre só sabia que participaria de algum novo trabalho dele quase nas vésperas da rodagem (risos).

"Vale Abraão" (1993 - foto abaixo) deve ser o maior filme que vocês fizeram: reconstituição de época, quatro horas de duração, inspiração em Gustave Flaubert e sua presença em praticamente todas as cenas. A experiência te marcou de alguma forma?
Foram quatro meses para fazermos "Vale Abraão". Tudo muito intenso, eu encarnei uma protagonista difícil. Havia forte influência do cenário, dos espaços onde a gente atuava, tudo que estava ao redor influenciava nos sentimentos dos personagens. E tinha ainda o peso, a importância, do livro da Agustina Bessa-Luís (autora portuguesa adaptada várias vezes por Manoel de Oliveira), que era outro elemento importante na nossa construção.

Como é Manoel no set?
Em geral, atores que acabaram de chegar para estar num filme dele esperam ser dirigidos e respeitarem sua vontade. Mas Manoel considera que o ator sabe muito melhor o que deve ser feito, então não é ele que vai explicar o que vai se fazer. Não alterando texto nem movimentação do corpo na cena - enfim, toda a disciplina que ele exige -, você tem a liberdade e o respeito nos sentimentos. Manoel confia na capacidade instintiva do ser humano de se levar pelas emoções, e é isso que ele espera.

Com a disciplina exigida por ele, como você chega a essas emoções instintivas? Eu sou muito esponja, para além da parte técnica de estudar personagem e roteiro. Acho que absorvo tudo quanto é energia. O espaço, as cores, as palavras no texto, tudo ganha uma dimensão diferente a cada instante e da forma como surgem na rodagem. São meus instrumentos de trabalho. O frio de "O Gebo e a Sombra", por exemplo: não preciso tremer para sentir que estou completamente desprotegida naquele lugar. Toda a obediência com as palavras ajuda a sentir isso, e não só às palavras que você tem que dizer, mas também as que vêm dos outros atores. De certa forma, nunca há silêncio nos filmes de Manoel. O que pode parecer silencioso é, de fato, a espera pela palavra do outro.

Com uma ou duas exceções, você foi atriz apenas de Manoel de Oliveira em 25 anos de carreira.
Já tive outros convites, muitos interessantes, de cineastas que admiro muito. Mas entrar no universo do Manoel torna difícil ir além. Vira uma condição de vida, de alguma forma. E tenho outros afazeres além do ofício de ser atriz. Acho que vivo ainda um "working in progress". Amo cinema, mas virei atriz totalmente ao acaso. Antes de "Os Canibais", tinha experiência apenas numa montagem estudantil de uma peça de Ionesco (risos). Eu estudava no Liceu Francês, em Lisboa. Queria ser médica, era matriculada num curso de letras, gostava de cinema e virei atriz.

"O Gebo e a Sombra" é todo ambientado num único espaço, com planos longos que chegam a mais de 20 minutos e um cuidado extremo na movimentação e presença dos atores. Foi difícil elaborar o filme?
O processo de filmar em digital virou docinho pro Manoel (risos). Para se ter ideia, ele queria fazer o filme todo sem corte, num plano único. Não tem mais o tempo que era exigido pela película, o digital permite não ter limite temporal. Em "O Gebo e a Sombra", Manoel começava a filmar e não avisava quando devíamos parar. O assistente de direção precisava ir a ele e cochichar: "Precisamos cortar, Manoel". À medida que o tempo avança no filme, você (tanto o ator quanto o espectador) está vivendo tudo que se passa ali.

Se você destacasse um único filme dentre os 19 que já fez com Manoel de Oliveira, qual seria seu favorito?
Prefiro dizer qual me deu mais alegria de rodar. Gostei imensamente de fazer "Party" (1996), por uma sucessão de acontecimentos. Teve aquele lugar maravilhoso (o filme foi rodado num balneário), tinha o roteiro, as cores da ilha, a interação com os outros atores (Irene Papas, Michel Piccoli, Rogério Samora). Foi a minha melhor rodagem, a mais divertida.

De que tipo de cinema você gosta?
Adoro Walter Salles, aqui do Brasil. Todo cinema acaba por ter um impacto especial em cada momento do ciclo da nossa vida. De repente sentimos a força de nomes que nem sempre levamos em conta. Você pode amar Abbas Kiarostami e Nanni Moretti na mesma medida. E sou fã de tudo que já foi feito pelo Wong Kar-wai.

Você tem alguma referência na atuação?
Fico em casa: Luís Miguel Cintra (ator português de cinema e teatro, participou de vários trabalhos de Manoel de Oliveira). Sua relação com os mais jovens, a descoberta da profundidade de um roteiro aparentemente simples, todo o simbolismo que ele carrega, acho incrível.

Nos últimos cinco anos, você exerceu funções importantes no ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), órgão do governo de Portugal. Ser atriz e conhecer a produção por dentro ajudou na atividade?
A experiência me dá o conhecimento de uma arte que não pode ser compreendida apenas como processo administrativo. É preciso haver a aceitação de que o cinema é uma área de especificidade muito frágil em sua lógica de produção. Então foi uma mais-valia eu ter entrado na lógica administrativa tendo sido atriz em tantos filmes.

Como você tem sentido a crise financeira em Portugal? O cinema português (que, como o Brasil, depende bastante do governo para existir) está sofrendo muito? É um horror, uma catástrofe absoluta. Vivemos numa queda de receitas de todo tipo, o governo cortou várias linhas de investimento, nem houve edital para produção em 2012. É o deserto absoluto. As consequências virão em 2013 e 2014, já que não se produziu cinema em Portugal este ano. Algumas produtoras já estão fechando, há muita gente sem ter o que fazer. É aterrador. Precisa-se se entender de uma vez que um país sem cultura é um país sem sociedade construída. Então vira obrigatoriedade cívica e humana o investimento na cultura.

* Originalmente publicado em "O Tempo" em 27.10.2012
* Foto de Leonor Silveira por Aline Arruda/Agência Foto

Abbas Kiarostami e o Japão


Há aproximadamente 18 anos, Abbas Kiarostami caminhava pelas ruas de Tóquio quando viu passar uma jovem de uniforme estudantil branco. A imagem da moça - seus traços, suas roupas, a movimentação, o jeito algo enigmático - fascinou o cineasta do Irã a ponto de ele alimentar, por todo esse tempo, a vontade de narrar uma história ambientada naquela cidade com uma personagem que se assemelhasse à tal garota. "Se eu tivesse uma câmera fotográfica naquele dia, talvez nunca tivesse pensado mais nisso", comenta ele.

Sem câmera na ocasião, Kiarostami esperou quase duas décadas para, enfim, jogar na tela as imagens e a narrativa fascinantes de "Um Alguém Apaixonado", filme que está na programação da 36ª Mostra de São Paulo e cuja primeira exibição aconteceu na noite de domingo, no Cinesesc, com a presença do diretor. O iraniano está na cidade tanto para acompanhar o longa quanto para ser agraciado com o Prêmio Leon Cakoff 2012, tributo antes conhecido como Prêmio Humanidade e que, a partir desta edição, leva o nome do fundador da Mostra, falecido no ano passado.

"Um Alguém Apaixonado" foi todo realizado em Tóquio, com elenco japonês e um universo de urbanidade que, como o próprio Kiarostami frisa, só poderia existir da forma que ele buscava no Japão. Trata-se de seu segundo filme seguido fora do Irã - antes, ele filmara "Cópia Fiel" (2010) na Itália. "Sempre faço o mesmo filme, de alguma forma, independente de onde estou. Sou eu ali filmando o tempo todo", simplifica ele.

Na juventude, Kiarostami, hoje aos 72 anos, assistiu a inúmeros trabalhos japoneses na Cinemateca de Teerã. Diz ter sido um fiel admirador de Yasujiro Ozu (1903-1963). Na pré-produção de "Um Alguém Apaixonado", ele viu alguns trabalhos recentes feitos no país e ficou decepcionado. "Acho que estão apenas querendo imitar Hollywood".

Em "Um Alguém Apaixonado", a estudante Akiko (Rin Takanashi) inicia o filme sendo convocada para um trabalho aparentemente enigmático ao espectador na casa de um professor (Tadashi Okuno). Antes, ela precisa lidar com o namorado ciumento (Ryo Kase). O emaranhamento desses três personagens vai ser o centro do filme; detalhar o que acontece tira a experiência que é se impregnar pelo caminhar lento e hipnótico desenvolvido por Kiarostami.

Sob total controle do tempo de cada cena e utilizando de um trabalho de fotografia especial, ele demonstra pleno domínio da forma, levando adiante questões caras ao seu cinema, como identidade, falsidade, deslocamento e sentimentos conflituosos - tudo a partir de gestos, lacunas e olhares. "Tentei não me deixar influenciar pelo fato de estar em Tóquio como alguém de fora, de não permitir que o filme soasse como a visão estrangeira de outra cultura", conta. "Deixei que o filme transparecesse o olhar de um cidadão de Tóquio, a partir de um acontecimento que fosse parte do cotidiano da cidade".

* Originalmente publicada em "O Tempo" em 30.10.2012
* Foto de Abbas Kiarostami por Mário Miranda/Agência Foto

Sergei Loznitsa: mapas da vida na Rússia


O movimento mais característico no cinema de Sergei Loznitsa é a panorâmica lateral, em que a câmera se move lentamente para a direita e exibe a mescla entre paisagens naturais e urbanas e rostos de pessoas anônimas. "A face humana é o mapa da vida", resume o cineasta ucraniano de 48 anos, homenageado neste ano pela Mostra de Cinema de São Paulo. Loznitsa está na cidade acompanhando a retrospectiva de sua obra, formada em maior parte por documentários.

São duas ficções, porém, que, ao competirem à Palma de Ouro em Cannes nos anos de 2010 e 2012, tornaram o nome de Loznitsa mais badalado no circuito mundial. "Minha Felicidade" e "Na Neblina" apresentaram a muitos críticos e espectadores o talento de um realizador cuja visão crua e brutal da Rússia é elemento fundador de um trabalho realmente especial. Ao se tomar contato com os documentários do diretor, a impressão se expande e revela um cineasta de observação singular e sensibilidade a tudo que esteja ao seu redor.

"Gosto muito de viajar e, em todos os lugares para onde vou, sempre olho e os considero potencialmente como lugares para fazer um filme", conta ele, em bate-papo num hotel em São Paulo. "Essa minha atenção acontece automaticamente, eu simplesmente penso ‘oh, aqui tem uma situação fantástica para observar’. Enquanto viajo, procuro lugares que me soem impactantes para filmar e que funcionem como um microcosmo, um espaço concentrado de alguma coisa ou de algum mistério de quem circula por ali".

Os títulos de alguns documentários de Loznitsa revelam o procedimento. Filmes como "Fábrica", "Paisagem", "Retrato", "A Colônia" e "A Estação de Trem" reúnem fragmentos de espaços para onde ele decidiu apontar a câmera e simplesmente captar o fluxo, o movimento, as conversas, os olhares, as complexidades de ambientes nem sempre devidamente percebidos pela pressa cotidiana. Loznitsa conta ter influências da literatura de Franz Kafka e Marcel Proust na busca por paradoxos e por ambientes "onde estamos, mas não deveríamos estar".

Outro aspecto essencial na obra do cineasta - tanto documental quanto ficcional - é a desilusão com os rumos políticos e sociais da Rússia. Loznitsa nasceu em Baranovitchi, território da Bielorrúsia, ex-república soviética. Ainda jovem, mudou-se para Kiev, na Ucrânia, onde estudou matemática e exerceu trabalhos na área de tecnologia, antes de decidir fazer cinema. Em 1991, foi estudar em Moscou e se formou no Instituto de Cinematografia, estreando em 1996 com o curta-metragem "Hoje Vamos Construir uma Casa".

A vivência nas três cidades - antes de se mudar para Berlim, na Alemanha, onde reside com a família - lhe deu formação sólida e aprimorou a desilusão de seu olhar em relação à Rússia pós-comunista. Em "Cinejornal" (2008) e "Bloqueio" (2005), Loznitsa fala diretamente, com profundo teor crítico e às vezes sarcástico, de movimentos históricos e políticos do país. "A Rússia está num processo talvez irreversível de degradação", dispara.

Loznitsa não teme represálias do governo Vladimir Putin devido às suas críticas, mas reconhece que o atual regime não lida bem com opositores que reclamam de suas políticas - outro aspecto a indignar o cineasta. "Minha Felicidade", filme de uma violência latente que brota gratuitamente de pequenas instituições de poder (especialmente a polícia), nasceu de noticiários de jornal. "Tentei, com o filme, apresentar a estrutura da nossa sociedade hoje e como ela está condenada a desaparecer", comenta. Não à toa, a produção de "Minha Felicidade" (foto acima) foi negada pelo comitê de cinema do país e precisou ser financiada por investidores da Alemanha e da Ucrânia.

Na segunda ficção, "Na Neblina" - vencedora do júri da crítica em Cannes, em maio -, Loznitsa volta ao passado. Adaptando o romance de Vasili Baykov, o diretor vai à 2ª Guerra Mundial para acompanhar a trajetória de três soldados às voltas com uma traição, durante a ocupação alemã na União Soviética. "A história não é um evento, mas o reflexo de um evento. O que aprendemos é sempre a cronologia da história, é aquilo que veio antes, durante e depois de alguma situação histórica. Porém, quando aconteceram, todos os fatos de determinada época eram simultâneos. A cronologia é uma invenção nossa", reflete Loznitsa.

A ambição do cineasta, portanto, é mostrar no cinema o emaranhado de acontecimentos que culminam no que ele chama de "consequências da história". Daí seus filmes serem essencialmente sobre grupos ou situações múltiplas, tendo vários personagens envolvidos em diversas ações ao mesmo tempo e em épocas distintas. Para Loznitsa, nada é mensurável pela ordem, mas pelo tempo. Ele leva o conceito para a própria estética. "Gosto de planos longos, sem cortes, porque eles permitem a você captar o tempo enquanto assiste às imagens e transmitem um senso de realidade muito grande".

*Originalmente publicado em "O Tempo" no dia 1.1.2012
* A foto de Sergei Loznitsa é de Mário Miranda/Agência Foto.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Simone Spoladore

A atriz curitibana Simone Spoladore, 33 anos, vai ser homenageada no final de janeiro de 2013 na 16ª  Mostra de Cinema de Tiradentes. Em fevereiro de 2010, escrevi o perfil abaixo para o jornal "O Tempo" e republico aqui aproveitando o ensejo. 

Para uma artista que se define como alguém em constante inquietação, os longos silêncios que antecipam as respostas de Simone Spoladore às perguntas feitas pelo repórter parecem não combinar com sua forma de se apresentar. Herança da origem paranaense? Na verdade, um pouco de cada coisa: Simone é uma atriz que pensa muito antes de se envolver num projeto, e só se envolve nos projetos que escolhe por causa da sua propalada inquietação.

"É algo que não se resolve nunca [na minha personalidade], e fico lidando com isso, tentando me acalmar, mas sempre procurando coisas novas", diz ela, em conversa por telefone direto de Curitiba, onde passa o restante desta semana descansando com a família.

O tempo será pouco para o tanto de trabalhos com os quais Simone, aos 31 anos de idade, tem se envolvido. Nos últimos meses, ela pôde ser vista em três filmes, uma peça de teatro e uma novela. Muito em breve, estará em outra peça e outros dois filmes, fora a novela "Bela, a Feia", na Record, que segue até maio.

Uma efervescência coerente à trajetória desta atriz que completa, em 2010, redondos 15 anos de carreira. O marco de sua caminhada, após experiências informais com balé, é a peça de teatro "Meno Male", de Juca de Oliveira, feita quando ela tinha 16. "Foi o primeiro trabalho pelo qual recebi algum dinheiro", brinca.

De lá até aqui, Simone se tornou uma espécie de musa da amargura. Após extenso currículo nos palcos (nunca interrompido, aliás), ela estreou no cinema com "Lavoura Arcaica", filmado em 1998 e apenas exibido a partir de 2001. Foi escolhida pelo diretor Luiz Fernando Carvalho entre outras 700 candidatas ao papel de Ana, personagem angustiada do livro de Raduan Nassar. O filme também lhe serviu de primeira experiência fora de Curitiba - Simone estava em São Paulo estudando atuação quando soube dos testes. Toda a preparação para fazer a Ana me fez mergulhar muito intensamente no cinema, que sempre foi minha grande paixão", conta.

Antes de "Lavoura...", porém, pôde ser vista na série televisiva "Os Maias", apresentada na Globo e na qual a atriz participava da primeira fase da história de Eça de Queiroz. Ela fazia a oportunista Maria Monforte, figura-chave da tragédia criada pelo escritor português. Na direção, novamente Luiz Fernando Carvalho, de quem Simone se tornou namorada por algum tempo - relação pessoal sobre a qual ela é profundamente discreta.

Simone Spoladore é muito convicta de que toda aquela fase ainda tateante da carreira foi primordial para a maturidade que ela acredita ter alcançado hoje - e, ironicamente, ela se vê muito próxima como o que era há 15 anos. "A Simone de ontem é bem parecida com a de hoje", constata. "No meio do caminho eu precisei passar por um processo de adaptação, mudar de cidade, lidar com vários detalhes da profissão. Depois de tudo, me sinto mais perto do frescor daquele começo, de todo o prazer, até de uma certa ingenuidade, no sentido positivo do termo".

A mudança foi de Curitiba para São Paulo e depois Rio de Janeiro, em definitivo (após "Os Maias" e no intuito de fazer a novela "Esperança"). Mas ela não se diz muito satisfeita na capital carioca. "Ainda tenho dificuldades, não consigo me adaptar bem ao Rio", assume. "Penso em me mudar para São Paulo, mas antes talvez faça uma viagem ao exterior depois que acabar a novela".

Ela não sabe explicar o porquê de não se adequar ao Rio. De novo: seria herança da natureza mais reservada do paranaense, em choque com o tropicalismo exacerbado dos cariocas? Fato é que, mais uma vez ironicamente, a curitibana inquieta se mostra outra vez desassossegada com qualquer comodismo.

Acostumada a personagens intensos, sofridos, doloridos, Simone Spoladore tem se divertido ao interpretar Verônica, a cartunesca vilã da novela “Bela, a Feia”, na TV Record. “Nunca tinha feito comédia na televisão e estou adorando a experiência. É bom rir em cena”, afirma ela, que ainda tem sutis ressalvas à TV. “Estou aprendendo a gostar”.

A voz da atriz se empolga de verdade ao falar de teatro e cinema. Tanto que ela não consegue apontar qual dos dois prefere, ainda que demonstre pender para o audiovisual. Não à toa, Spoladore poderá ser vista em ao menos quatro filmes ao longo de 2010. Três deles têm sido exibidos em festivais mundo afora: “Natimorto”, de Paulo Machline, no qual contracena com o escritor Lourenço Mutarelli (autor do livro adaptado por Machline); “Insolação”, no qual retoma, via cinema, parceria com o dramaturgo Felipe Hirsch, aqui acompanhada de Daniela Thomas na direção; e “Elvis e Madona”, comédia de Marcelo Laffitte na qual Spoladore é uma lésbica que se apaixona por um travesti.

“São personagens muito diferentes em filmes totalmente distintos”, destaca a atriz, sem temor de uma eventual superexposição. Tanto é que ela já se prepara para voltar a um set de filmagem, a partir de 7 de março, quando vai integrar o elenco de “Nove Crônicas para um Coração aos Berros”, estreia na direção de longas do brasiliense Gustavo Galvão.

Antes disso, Spoladore poderá ser vista em “Luz nas Trevas – Revolta de Luz Vermelha”, filmado no ano passado por Helena Ignez e Ícaro Martins a partir de um roteiro de Rogério Sganzerla. “É uma participação pequena, faço uma perua, esposa do personagem do Sérgio Mamberti”, adianta.

No teatro, Spoladore fez, no ano passado, seu primeiro projeto autoral. “Louise/Valentina” surgiu de conversas suas com o colega Felipe Vidal, inspiradas pela personagem de quadrinhos Valentina, criação do italiano Guido Crepax, e pela atriz norte-americana Louise Brooks (1906-85). “Entramos na sala de ensaios só com um pré-roteiro e criamos o espetáculo lá dentro”, relembra.

Apresentado no Rio de Janeiro, o monólogo de “Louise/Valentina” integra dança, artes visuais, cinema e HQs e ainda deve percorrer outras cidades do país. Enquanto aguarda definições, Spoladore estará no Paraná, no Festival de Teatro de Curitiba, com a peça “Não Sobre o Amor”, dirigida novamente por Felipe Hirsch.