sábado, 21 de julho de 2012

André Diniz


Animado com a ótima repercussão de sua história em quadrinhos "Morro da Favela", publicada pelo selo Barba Negra, da Leya, André Diniz decidiu arriscar e oferecer o trabalho à editora francesa Des Rond Dans l’O. Sem falar uma única palavra da língua de Moebius, Diniz apelou aos recursos salvadores do Google Translate.

O método virtualmente mambembe funcionou. A editora não só adorou "Morro da Favela" como a colocou no mercado francófono e levou Diniz a uma turnê na Europa. Ele aportou de volta ao Brasil no final de junho, cheio de elogios e propostas. Mal respirou e, no dia 30, seguiu para o Cinesesc, na capital paulista, onde recebeu dois troféus HQ Mix - o de melhor álbum nacional, por "Morro da Favela", e o de roteirista nacional (categoria na qual já tinha ganhado nos anos de 2004 e 2010).

O reconhecimento ratifica o que os leitores de HQs têm acompanhado desde o começo da década passada. Nascido no Rio de Janeiro e radicado em São Paulo desde novembro de 2010, André Diniz é hoje, como apontou o crítico Sidney Gusman, o quadrinhista mais prolífico do Brasil. Nos últimos anos, além de "Morro da Favela", outros destaques foram "A Cachoeira de Paulo Afonso", "O Quilombo Orum Aiê" e "O Negrinho do Pastoreio" - para ficar apenas nos que ele fez tanto roteiro quanto desenho. Num mercado como o nosso, em que trabalhar com HQs ainda é um perrengue, ter produção constante (e de qualidade) é raro.

Aos 36 anos, Diniz vem de uma caminhada que nem ele mesmo sabe definir onde começou. "Desde criancinha gosto de ler e desenhar muito", relembra. Na juventude, após a inevitável fase de acompanhar Turma da Mônica, foi leitor das aventuras de Tintim e do Tio Patinhas escrito pelo conceituado Carl Barks. Diniz conseguiu a façanha de passar incólume pelo universo dos super-heróis. "Ah, aquilo nunca me seduziu. Acho que os desenhos não me atraíam", comenta. Por outro lado, alimentou-se vorazmente da satírica "Mad". "Se tem alguma coisa na vida que posso dizer que fui fã, é da ‘Mad’

Fanzines. Talvez o jeito despojado da publicação editada no Brasil pelo mítico Ota tenha inspirado Diniz a bolar seus fanzines. A partir de 1994, sozinho, desenhava e escrevia histórias em papéis A4, com tiragens independentes de 500 exemplares que distribuía em lojas de quadrinhos. Num certo período, imprimindo em gráficas de jornal, chegou a tiragens de 3.000 exemplares.

"O fanzine foi a minha faculdade, o meu doutorado, foi tudo", conta ele, que chegou a cursar um ano de desenho industrial e desistiu. "Não me somou nada".

Em 1999, Diniz fundou a própria editora, a Nona Arte, e publicou dois trabalhos que considera sua estreia como quadrinhista profissional: "Subversivos", com desenhos de Laudo Ferreira, e "Fawcett", cujos traços foram do mestre Flavio Colin (1930-2002). "Ganhei alguns prêmios e tive muita visibilidade na mídia", conta ele. Dinheiro? "Nem pensar. Se for contar por isso, só agora estou me tornando profissional", brinca.

Já naqueles dois primeiros títulos, um elemento muito característico do trabalho artístico de André Diniz podia ser notado: a preocupação com a pesquisa. Seus roteiros sempre partem de elementos do mundo real, ou pelo menos tratam de questões palpáveis. A ditadura militar, por exemplo, rendeu ao menos duas histórias - a citada "Subversivos" e a subsequente "Ato 5", desenhada por José Aguiar.

"Ao diversificar minhas leituras, desde muito jovem, percebi que várias coisas que eu lia dariam histórias fascinantes. Gosto de manter a conexão com o que não é apenas uma ideia ou só imaginação", diz.

Desenhos.
Apesar de arriscar desenhos desde criança, André Diniz demorou a assumir os traços de seus próprios trabalhos. A segurança foi reforçada quando ele tomou contato com elementos da arte africana. Ao produzir "Chico Rei" (2006) para a Franco Editora, Diniz se fascinou com a trajetória do protagonista - Galanga, rei do Congo, capturado para trabalhar como escravo quando o Brasil ainda era colônia portuguesa.

"A estilização do desenho africano tem muito a ver com a minha forma de olhar, porque eu não sou de detectar sutilezas, prefiro as formas exageradas. Então incorporei isso aos meus desenhos e me senti mais preparado", conta. A técnica da xilogravura também se tornou uma referência.

Tecnicamente, o computador se tornou a ferramenta ideal para André Diniz. Se antes ele fazia rascunhos a mão e depois escaneava para a tela, agora ele faz diretamente no PC. "É maravilhoso poder ajustar o desenho ainda no processo. E ainda tem ainda o CTRL-Z (atalho para desfazer uma ação)".

No caso de "Morro da Favela", Diniz foi a campo. A HQ narra a vida do fotógrafo Maurício Hora, que vive no Morro da Providência (a primeira favela carioca) desde quando nasceu e nunca quis sair de lá. O autor se interessou pela biografia de Hora ao conhecê-lo através de um comentário do cunhado. "Quando liguei para o Maurício para dizer que gostaria de contar a história dele em quadrinhos, senti um estranhamento. Mas logo ele entendeu".

Diniz fez várias visitas ao Morro da Providência e conheceu de perto um cotidiano no morro bem distante dos clichês de favela. "Tive surpresas boas e ruins, é claro, mas vi tudo por mim mesmo, sem o filtro da mídia". Ele ainda absorveu muito da ambientação captada por Hora em suas fotografias - várias delas reproduzidas num adendo do álbum lançado pela Leya.

Além de ter garantido a publicação de "Morro da Favela" na França, André Diniz também terá o trabalho vertido para o inglês, sob o título "Picture a Favela". Vai sair na Inglaterra e nos EUA, pela editora SelfMadeHero. Há algo de bastante irônico no fato de que Diniz, pouco afeito a quadrinhos de super-heróis e cuja trajetória começou entregando fanzines, seja publicado fora do país por uma empresa intitulada "herói por si mesmo".

*Originalmente publicado em "O Tempo" no dia 11.7.2012