sábado, 15 de setembro de 2012

O vaivém nos curtas

Por muitos cantos, o clichê ainda é propalado: o curta-metragem é uma "escada" para o longa-metragem. Falsa premissa, já negada várias vezes ao longo da história por realizadores que, num movimento muitas vezes curioso, fizeram curtas, depois partiram para o longa e, em determinado momento, retornaram ao curta.

Recentemente, o vaivém ganhou pelo menos dois contendores de envergadura no panorama da produção audiovisual brasileira. Um é o gaúcho Jorge Furtado, com seu novo trabalho, "Até a Vista"; outro é a paulista Juliana Rojas (foto abaixo), cuja produção mais recente é "O Duplo". Ambos os títulos estão na programação da Mostra Brasil do 23º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo.

Furtado e Rojas são de gerações distintas. Ele, aos 53 anos, tornou seu nome conhecido no cinema brasileiro com o curta "Ilha das Flores" (1989), marco da produção do país ainda hoje reverenciado. Após vários outros trabalhos de pequena duração, o cineasta estreou no longa com "Houve uma Vez Dois Verões" (2002) e fez bastante sucesso com "O Homem que Copiava" (2003).

Mesmo assim, Furtado se rendeu às origens e lançou o curta "Até a Vista" no Cine PE, em Recife, em abril deste ano - e, de lá, saiu com os prêmios de melhor filme, roteiro, ator (Felipe de Paula) e trilha sonora. Realizado pela produtora de Furtado, a Casa de Cinema de Porto Alegre, originalmente para o projeto Fronteras, o filme é uma coprodução com a 100 Bares, pertencente ao argentino Juan José Campanella, conhecido pelos sucessos "O Filho da Noiva" (2001) e "O Segredo dos seus Olhos". O trânsito entre cinema e televisão sempre foi bastante comum para Furtado e o faz lidar naturalmente com a mudança de trajetos entre duração e formato dos filmes.

Os olhares de dúvida são uma constante para quem, especialmente no Brasil, se arrisca a sair de um longa-metragem para fazer mais curtas. Juliana Rojas, 31, confirma. "Há, sim, um estranhamento", conta ela, que fez dois filmes curtos ("Pra eu Dormir Tranquilo" e "O Duplo") depois de estrear em festivais e no circuito comercial seu primeiro longa, "Trabalhar Cansa" (2011), dirigido em parceria com Marco Dutra. "Existe um pensamento muito de 'carreira' que não costuma incluir o curta-metragem. Então muita gente acaba não entendendo por que você, depois de realmente iniciar uma 'carreira' ao fazer o longa, voltou a fazer curta".

A cineasta tem trajetória especial. Antes de "Trabalhar Cansa" - que competiu na mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes -, havia feito vários curtas-metragens. Dois deles, também com Dutra ("O Lençol Branco" e "Um Ramo"), foram exibidos em Cannes em 2004 e 2007, respectivamente. "O Duplo" levou Rojas novamente à França, em maio deste ano, e lhe rendeu um prêmio na competição de curtas da seção Semana da Crítica.

Mesmo assim, Rojas sente que, na hora de buscar apoios para a feitura de um longa-metragem, a "carreira" nos curtas é válida somente uma vez. "O 'Trabalhar Cansa' é o que passou a ser considerado na minha trajetória. Em geral, não faz diferença a um possível apoiador ou patrocinador o fato de a gente ter vários curtas ou que tenhamos ido a Cannes com eles. Isso servia antes da estreia do longa. Depois, é o 'Trabalhar Cansa' que vai importar no currículo".

É um raciocínio tipicamente comercial de um mercado de produção essencialmente voltado a "empreendimentos", na definição do cineasta e curador paulista Francisco César Filho - popularmente conhecido como Chiquinho. Com quase três décadas de dedicação absoluta ao cinema em diversas frentes, ele aponta meados da década de 1980 como a guinada à valorização do curta-metragem enquanto forma autônoma de linguagem.

"Naquela época, o curta se tornou um formato de ponta no audiovisual no mundo inteiro", conta Chiquinho. "Foi um período em que cineastas importantes descobriram que ali não estava apenas um formato, mas outra maneira de fazer filmes. Nomes como Jean-Luc Godard e Wim Wenders passaram a trabalhar com curtas mesmo depois de terem feito alguns longas-metragens", observa.

Liberdade.
O cineasta Francisco César Filho, que tem vários curtas-metragens no currículo, demorou quase 30 anos para se render à realização de um longa. Em janeiro deste ano, exibiu pela primeira vez "Augustas", no encerramento da Mostra de Cinema de Tiradentes. "Sob diversos aspectos, não me interessa. Existe um tipo de comprometimento, especialmente em relação a lançamento, que foge daquilo que eu gosto realmente de fazer", afirma.

Ele acredita que a liberdade proporcionada por um curta-metragem - tanto em termos estéticos e criativos quanto na mecânica financeira - torna a feitura algo bastante sedutor a realizadores de criatividade pulsante. "A ideia de comércio é inerente ao longa, e não há muito como escapar, ainda mais atualmente, em que se valoriza o grande espetáculo em detrimento da criação. Já o curta ainda preserva o descompromisso mercadológico, o que é muito libertador".

O cineasta aponta que, quando um realizador de longa se arrisca num curta, sai "oxigenado, revigorado, estimulado". "Em geral, os diretores passam tanto tempo preocupados com a realização de longas que não têm tempo de brincarem e se aproveitarem de outros formatos. Mas alguns tentam e, quando conseguem, sentem-se renovados para sempre".

Um exemplo foi o paulista Beto Brant - que veio do curta-metragem e depois enveredou em longas como "Os Matadores" (1995) e "O Invasor" (2001). No ano passado, ele participou do Cel.U.Cine, festival de micrometragens para o qual fez "Nicinha, um Transe Amazônico" em celular e com apenas três minutos de duração. Ficou encantado com as possibilidades proporcionadas, chegando a afirmar, na época, que tinha revolucionado sua maneira de pensar a liberdade numa realização.

Para Juliana Rojas, o maior motivador de permanecer fazendo curtas mesmo depois de "Trabalhar Cansa" é justamente os aspectos de formação e risco. "O processo de um longa, apesar de ser importante, é um tanto traumático. Tem uma complexidade grande e um ritmo desgastante física e emocionalmente, e você precisa estar muito apaixonado pelo projeto para se dedicar tanto a ele", diz ela. "Já o curta é diferente. Ele é um haikai, um recorte, não exige que você faça 'a grande ideia'. É outro tipo de aprendizado e permite que se experimente e se aprenda muita coisa que, no longa, não seria possível".

A realizadora pretende seguir transitando entre os formatos, o que lhe garante estar sempre em atividade. Rojas prepara um curta experimental, "Wild Track"; outro longa, "As Boas Maneiras", com o amigo Marco Dutra; e um telefilme para a TV Cultura, "Sinfonia da Necrópole", definido por ela como "um musical num cemitério".

*Publicado em "O Tempo" em 25.8.2012

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