sábado, 15 de setembro de 2012

Cosmópolis, de David Cronenberg


O canadense David Cronenberg trouxe a Cannes 2012 uma pancada em termos políticos e estéticos como há muito ele não fazia. Cosmopolis adapta com jeito todo particular o romance de Don DeLillo, em produção cirurgicamente econômica do português Paulo Branco. Em cena, Eric, um yuppie numa limusine dentro do coração econômico de Manhattan e às voltas com protestos populares que fazem ponte direta do filme com movimentos recentes de ocupação em Wall Street.

Todo filmado em Toronto, no Canadá, Cosmopolis exala uma artificialidade provocadora na recriação de ambiente, com evidente uso de chroma key visto pela janela nas cenas internas do carro em contraste à autêntica fortaleza tecnológica no interior do veículo. O mundo verdadeiro de Eric está basicamente naquela limusine; o que está fora não lhe diz respeito, ou pelo menos não lhe dizia respeito até ele tentar refletir sobre o que surge pelo caminho. Há a imagem muito forte dessa limusine completamente pichada e maltratada servindo de símbolo perfeito ao próprio descascamento do personagem.

Robert Pattinson encarna com propriedade e segurança o executivo-escovinha que cisma em cortar o cabelo do outro lado da cidade. A interpretação do ator tem a carga fascinante de indiferença vista, por exemplo, no Ryan Gosling de Drive. A quebra da casca e a viagem física e mental desse personagem são o mote de um filme surpreendentemente verborrágico e reflexivo, em que a construção das cenas tem uma precisão digna de te levantar da cadeira quanto algo se desestabiliza. Um tiro absolutamente inesperado coloca o espectador, até então siderado pelo tom hipnótico de Cosmopolis, numa zona de desconforto ainda maior, em que absolutamente tudo é passível de acontecer. Usando o próprio cinema de Cronenberg como referência, é algo similar à cena do café em Marcas da Violência, porém mais abrupta e direta.

Dentro da filmografia de Cronenberg, Cosmopolis tem um visual e uma energia que dialogam diretamente com suas produções de maior risco, especialmente dos anos 1990, como Crash, Mistérios e Paixões e eXistenZ. O experimentalismo do filme quebra a sequência de projetos de estrutura mais clássica que o realizador vinha desenvolvendo desde Marcas da Violência e mantém a obsessão pelo corpo (suas funcionalidades e limites). “Tem cheiro de sexo exalando de todos os seus poros”, diz uma personagem a Eric. Cronenberg leva curvas e movimentos humanos para a essência do filme. Ele sempre filmou sexo muito bem, e em Cosmopolis há o complemento de uma reflexão, em diálogos e provocações, do significado da sexualidade numa sociedade materialista e esvaziada de valores.

Outro aspecto fascinante são os “solos” de diversos atores (Samantha Morton, Juliette Binoche, Mathieu Amalric, Paul Giamatti) em interação com a angústia crescente do protagonista. Cada um representa um tipo de questionamento, uma outra forma de olhar as coisas, a problematização das certezas que a realidade daquele executivo construiu através de riqueza e regalias – e a exploração da mão de obra proletária. O desfecho, em especial (uma longa cena de diálogo em tensão total), põe abaixo as certezas e promove o encontro com o mundo “verdadeiro”.

É uma experiência curiosa ver Cosmopolis seguindo uma sequência de filmes particularmente instigantes (Like Someone in Love, de Abbas Kiarostami, e Holy Motors, de Leos Carax), que exigem adesão a mundos exclusivamente cinematográficos a partir de elementos como carros em deslocamento, diálogos filmados dentro de “bolhas” isoladas e a colocação em xeque da noção de representação e realidade. Uma trinca marcante, desde já.

*Publicado em "Filmes Polvo" em maio de 2012, na cobertura do Festival de Cannes

Um comentário:

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