sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Robert Louis Stevenson

É tão animador quanto relevante um livro do escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894) que trate sua obra de uma forma devidamente adulta. Devido à narrativa cristalina e às histórias de teor fantástico ou aventuresco, Stevenson ainda carrega, em alguns meios, a pecha de autor infantojuvenil e adequado só a bancos escolares. Nada mais falacioso. O lançamento de “O Clube do Suicídio e Outras Histórias” pela Cosac Naify pode colocar Stevenson numa posição mais justa ao seu gênio.

Para além da seleção de seis precisas histórias do autor, a edição (publicada dentro da coleção Prosa do Mundo) dá tratamento de luxo ao escocês, com a inclusão de um amplo prefácio de Davi Arrigucci Jr. e dois artigos fundamentais sobre Stevenson – um, mais geral, do norte-americano Henry James e publicado em 1888 numa revista; e outro, do russo Vladimir Nabokóv, a partir de uma aula de 1980, que versa especificamente sobre a mais famosa criação de Stevenson, a novela “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”.

Esta é, aliás, a sempre grande atração de qualquer antologia de Stevenson. Publicada pela primeira vez em 1886, a novela ficou mais conhecida no Brasil como “O Médico e o Monstro”, ainda que esse título seja uma liberdade poética bastante redutora ao teor da história.

“O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” é apenas outro demonstrativo do talento literário de Stevenson – também confirmado especialmente no conto “Markheim” e nas três partes distintas da novela “O Clube do Suicídio”. Arrigucci cita o poeta inglês John Keats para definir a mágica proporcionada pelo autor: “Aquilo que a imaginação capta como beleza deve ser verdade”. Logo em seguida, o próprio prefaciador completa o raciocínio, caracterizando a prosa do escocês como a mistura entre “a imaginação que inventa histórias parecidas aos sonhos e a aguçada sensibilidade visual”.

Por mais que Stevenson fale de crimes, duplas personalidades, suicidas, assassinos, cadáveres ambulantes, encontros com o demônio e ação em alto-mar (ele é autor do romance “A Ilha do Tesouro”), o escritor sempre narra os limites da natureza humana diante de situações de profunda complexidade moral e mesmo científica – o que, à sua maneira, o aproxima de nomes como Jorge Luis Borges e Dostoiévski.

Adaptações
“O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, a mais famosa e referencial história criada por Robert Louis Stevenson, entrou para o inconsciente coletivo de tal forma que é impossível alguém não saber do que a trama fala.

Na TV e no cinema, são mais de 120 adaptações desde o início do século passado (a primeira é de 1908, feita pelos estúdios Selig). Para teatro e rádio, perdeu-se a conta. Há ainda as versões indiretas, que se utilizam do enredo básico da novela para desenvolver uma história própria.

Na TV, é o caso de algumas animações famosas protagonizadas pela dupla Frajola e Piu-piu, nas quais o doce bichinho amarelo se torna um monstro selvagem; e, nos quadrinhos, Stan Lee provavelmente se inspirou em Stevenson para criar o Hulk – e seu alter ego, o cientista Bruce Banner.

Até os Trapalhões fizeram a sua versão, em 1980, na comédia “O Incrível Monstro Trapalhão”.

O CLUBE DO SUICÍDIO E OUTRAS HISTÓRIAS
Editora Cosac Naify
500 páginas
Tradução de Andréa Rocha
R$ 66

*Publicado em "O Tempo" no dia 17.9.2011

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

"Hellblazer" e John Constantine


Ainda no útero, ele estrangulou o irmão gêmeo com o cordão umbilical e matou a mãe no parto. Jovem, estudou artes arcanas e misticismo. Fumante inveterado, tocou na banda de rock Membrana Mucosa, enviou acidentalmente a alma de uma garotinha para o inferno e recebeu transfusão de sangue de um demônio.

Estes são apenas alguns elementos da concepção de John Constantine, o bruxo inventado pelo escritor inglês Alan Moore e protagonista da revista mensal "Hellblazer". O personagem completou 25 anos de criação em 2010. Para celebrar, a editora DC Comics lançou o álbum "Pandemônio", história na qual Constantine aparece numa trama envolvendo um atentado a bomba no museu de Londres e estranhos artefatos sumérios. Escrita por Jamie Delano - o primeiro roteirista de "Hellblazer" - e desenhada por Jock, a edição especial chegou às bancas brasileiras na última semana [em março de 2011], fechando o ciclo de aniversário do personagem.

Na verdade, Constantine surgiu pela primeira vez em 1985, na revista mensal do Monstro do Pântano, então escrita por Moore. Inicialmente apenas coadjuvante - ele surgia no enredo como um "guru" do Monstro, ensinando-lhe a usar seus poderes -, Constantine chamou atenção dos leitores desde o começo. O mistério em torno de seu passado, a ironia tipicamente britânica, o diálogo com criaturas sobrenaturais e o visual inspirado no cantor Sting, ex-vocalista da banda The Police, renderam ao personagem um título próprio.

Em janeiro de 1988, chegava às bancas a primeira "Hellblazer" (ou "desbravador do inferno", numa tradução aproximada), com roteiros de Delano e desenhos de John Ridgway. A HQ serviu de estopim para a fundação do selo Vertigo, em 1993, com histórias de teor adulto. Até hoje, "Hellblazer" segue como o título mais antigo ainda em publicação pela Vertigo, estando atualmente na edição 277 nos EUA. No Brasil, sua publicação é meio atrapalhada, mas tem sido ajustada pela Panini, que atualmente edita a série no mix mensal da revista "Vertigo". Por aqui, "Hellblazer" ainda está no número 190, com roteiros de Mike Carey.

"O maior legado do John Constantine foi ter sido um dos primeiros personagens moralmente ambíguos dos quadrinhos, deixando completamente de lado o heroísmo clássico e permitindo uma ‘flexibilidade moral’ para os protagonistas das séries", diz Fabiano Denardin, atual editor da HQ no Brasil. "É difícil imaginar que teríamos algumas séries sem ter tido "Hellblazer" antes. ‘Preacher’, por exemplo, feita por Garth Ennis após ele ter trabalhado com "Hellblazer". Talvez nem tivéssemos ‘Sandman’, de Neil Gaiman, se não houvesse Constantine".

Para o crítico de HQs Eduardo Nasi, "é bastante surpreendente que a série tenha chegado até aqui tão intacta". "‘Hellblazer" não chega a ser um campeão de vendas, mas Constantine continua o mesmo mago inglês loiro arrogante, que bebe, vai a pubs e enfrenta demônios", destaca. Nasi acredita que a longevidade de "Hellblazer" se deva muito ao espírito jovem e ousado do protagonista. "Constantine inicia sua trajetória assim: um punk sem nada de especial que começa a explorar o mundo e vai muito além do que nós geralmente vamos. Ele conjura demônios, faz sexo sem pudores, usa todo tipo de droga e se mete em todo tipo de merda. Ele me parece muito mais um cara que busca experiências do que, de fato, um adulto formado".

Denardin crê que a maior diferença de Constantine em relação a seus colegas de HQ está justamente nessa liberdade. "Um herói tem os limites bem definidos. Um anti-herói permite o que a imaginação de um escritor quiser fazer sem descaracterizá-lo", diz.

Em 2005, e depois de anos de especulação, a revista em quadrinhos "Hellblazer" se tornou o filme "Constantine". Porém, quase nada do que se sabia da HQ foi para as telas. A começar pelo próprio personagem central. Britânico, loiro e mal encarado, John Constantine foi encarnado no cinema pelo norte-americano, moreno e rosto-de-bebê Keanu Reeves. A ambientação da trama saiu das ruas sombrias de Londres para o universo pop de Los Angeles.

Apesar de inspirado no arco de histórias "Hábitos Perigosos", publicado em 1991, o roteiro do longa de Francis Lawrence pouco guardou de semelhanças com o universo original de "Hellblazer". Mesmo assim, foi sucesso de bilheteria na época.

Publicação no Brasil
"Hellblazer" foi publicado pela primeira vez no país em 1990, na revista mensal "Monstro do Pântano", em formatinho, pela editora Abril. Em 1995, a Abril lançou a publicação mensal "Vertigo", contendo histórias com John Constantine escritas por Garth Ennis. A revista, porém, só durou um ano.

Em 1997, as HQs do bruxo inglês migraram para a editora Metal Pesado, que as publicaram de forma bastante irregular, até a Brainstore assumi-las em 2000. A Pixel editou a série no final da década passada, em diversos álbuns especiais. Atualmente, "Hellblazer" sai pela Panini em histórias mensais e encadernados esporádicos.

*Publicado em "O Tempo" no dia 27.3.2011

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Sobre "A Alegria", de Felipe Bragança e Marina Meliande

Mais de um ano após ser exibido na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela do Festival de Cannes, "A Alegria", dos cariocas Felipe Bragança e Marina Meliande, ganha o circuito comercial. O filme está em cartaz em Belo Horizonte desde sexta-feira [9 de setembro], em duas sessões no Usiminas Cineclube Savassi. Leia uma conversa que tive com o Felipe, por e-mail.

De que tipo de inquietação (pessoal, estética, narrativa, artística) nasce "A Alegria"? O filme nasce como projeto pensado a partir de uma dupla inquietação inicial - um incômodo grande em relação ao imaginário da grande mídia em torno do lugar político do jovem contemporâneo, sempre colocado como impotente e inerte, e um outro incômodo em relação à imagem do cinema brasileiro como algo aprisionado a uma pauta realista, reagindo apenas a impulsos temáticos e não se assumindo como criador de imagens e sensações e formas de vida. De alguma forma, toda a Trilogia Coração no Fogo é fruto de uma grande incapacidade de ficar parados que nos assolou em 2006 e que veio explodir agora com os filmes chegando nas salas de cinema.

O filme me parece refletir basicamente sobre como falar de juventude na ficção hoje, em especial no cinema brasileiro (devido às referências ao Rio e à violência). "A Alegria" é um filme jovem, sobre jovens ou um filme para jovens? Queríamos um filme adolescente: desejoso, forte, nervoso, calmo, sonhador e cheio de defeitos, incerto. Sendo assim - acho que é um filme que pode ser pensado tanto como um ser-vivo com o qual um adolescente pode se identificar, mas também um filme que coloca o lugar do adolescente como um lugar mítico de potência e criação, que vai além do adolescente como momento biológico, mas como contra-signo da apatia - e isso pode ser visto também como um filme "sobre adolescentes". Gostamos de confundir essas camadas. Entre John Hughes, Sganzerla, animé japonês e agendas adolescentes. E entre o que é discurso do autor e o que é vida independente do próprio filme, como algo que se movimenta à nossa revelia. Essa era a função dos não-atores no filme: deixar tudo prestes a desabar num mundo em ebulição.


"A Alegria" lida com questões muito realistas (adolescência, angústias, violência) num viés profundamente fabulista e lúdico. Como vocês conduziram o tom do filme dentro desse pensamento de dosar as duas "orientações"? Não gostamos de dividir as questões realistas das questões fabulares. Pensamos no filme como um fluxo de fantasmagorias criando imagens, discursos e sensações em torno daquilo do que queremos nos aproximar: esse lugar onde a realidade apática do Rio pudesse ser desafiada. A questão da violência entra, assim, também dentro desse imaginário de pesadelos e delírios da cidade que os personagens habitam. Então o tom fabular, pra gente, emerge de dentro do lugar realista, e vice-versa. Procuramos criar isso por dentro da fotografia e cenografia - em tons as vezes vibrantes e as vezes pastéis, em objetos realistas deslocados de sua normalidade em contraponto a momento de monstruosidade assumida. E também nos utilizando de um tom de diálogos que nos colocassem sempre num estado de dúvida, de alerta, de atenção.

O filme integra a chama Trilogia Coração no Fogo. No que ela consiste? Tudo gira em torno de um bilhete adolescente que encontrei em 2006 em uma pesquisa, já pensando em escrever um filme sobre juventude no Rio de Janeiro. Um bilhete anônimo de uma menina pela qual me apaixonei e dei um nome fictício: Luiza, por me fazer pensar em Luz. Daí, em conversas com Marina, pensamos numa trilogia sobre amores, utopias, aventura e risco por dentro desse olhar juvenil que estava no bilhete misterioso. Uma trilogia que girasse em torno da personagem da Luiza, despedaçada em três: no "A Fuga da Mulher Gorila" temos uma fábula feminina sobre o abandono e a transformação do corpo. A personagem de Flora Dias no Gorila é uma espécie de alter-ego sonhado pela Luiza, que sonha também com a Luiza do "A Alegria". O "Desassossego" é um filme em dez fragmentos de cinema, todos inspirados numa carta-manifesto assinada pela Luiza e por mim, e que mandei para 14 diretores. E "A Alegria" é o filme que narra algumas das aventuras da Luiza propriamente ditas, interpretada pela Tainá Medina que "incorporou" essa menina mítica como que incorpora um santo. Uma menina que eu nunca encontrei de verdade, mas que pra mim, pra nós, existe.

Você já foi definido como "um cineasta que faz críticas". No que sua experiência com crítica de cinema (e de cinefilia) te ajudou a desenvolver os filmes que vocês fizeram? Me chamavam assim porque eu nunca tive a mesma disciplina e dedicação para escrever sobre filmes que eu tenho para filmar e pensar filmes. Então eu escrevia nos entremeios das coisas que eu ia pensando, filmando. Em algum momento, eu já estava com 27 anos, resolvi deixar de vez de escrever resenhas de filmes e participar de revistas de críticas. Fazer filmes já me ocupava muito e eu achava que não era escrevendo sobre filmes que ia dar minha maior contribuição para o que eu via a meu redor, de bom e ruim. Conviver com aqueles críticos por 6 anos me deu uma carga cinéfila muito forte, e o hábito de mesclar filmes, referências e criar conexões entre elementos cinematográficos de forma criativa. Me ajudou também a aprender a pensar os filmes "dos outros", pela diferença e particularidade de cada proposta. Um filme como "Desassossego", onde tive que convidar e coordenar 13 diretores talentosos, ficou muito mais fácil de fazer por eu ter essa vasta experiência em observar o comportamento e as imagens de outros diretores.

Os curtas de Beto Brant

Às vésperas de apresentar pela primeira vez seu sétimo longa-metragem ("Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios", codirigido por Renato Ciasca, vai ter premiére no Festival do Rio em outubro), o cineasta paulista Beto Brant vem hoje [12 de setembro] a Belo Horizonte para, no projeto Curta Circuito, apresentar uma série de curtas-metragens que marcam uma antiga e uma nova fase na carreira.

A antiga se refere ao começo como realizador, representado por "Aurora" (1987), feito com Ciasca, "Dov’e Meneghetti" (1989) e "Jó" (1993), este em parceria com Ralph Strelow. "São projetos de uma época minha ligada à informação, quando eu estava me encontrando dentro do cinema, buscando as possibilidades de linguagem e algum tipo de amadurecimento", define Brant.

Na época da trinca acima, o cineasta acabara de se formar no curso de cinema da Faap, em São Paulo. Nesses pequenos filmes, é possível perceber elementos que depois seriam cada vez mais aperfeiçoados por Brant, entre eles o gosto por adaptações literárias ("Aurora" leva à tela um trecho de "O Céu em Minhas Mãos", do argentino Mempo Giardinelli) e a investigação de formas variadas de narrar - o que está bastante presente nas diferenças estéticas de longas como "O Invasor" (2001), "Crime Delicado" (2005) e "Cão sem Dono" (2007).

Já a segunda leva de curtas a serem apresentados fazem parte de uma busca mais atual de Beto Brant - a do experimentador de tecnologias, a do artista que descobre as infinitas possibilidades dos novos equipamentos de filmar. "Nicinha, um Transe Amazônico" (2011), "Cura Dor" (2006) e "Asas, Sombras, Bicos e Unhas de Sonhos" (2007) são filmetes de três a sete minutos feitos a partir de pesquisas para outros projetos ou diante do desafio de usar de câmeras de celular.

"Esse tipo de filme me permite uma independência muito grande", diz Brant. "Estou muito animado de continuar fazendo e trabalhando nisso sempre. Estou até me equipando melhor para dar seguimento".

Desde 1997, quando surgiu no circuito de longas-metragens com "Os Matadores", Beto Brant tem se reafirmado como um dos nomes mais expressivos do audiovisual de ficção brasileiro. Além da força dos filmes (vieram depois "Ação Entre Amigos", "O Invasor", "Crime Delicado", "Cão sem Dono" e "O Amor Segundo B. Schianberg"), o diretor tem se notabilizado pela bem-sucedida parceria com o escritor Marçal Aquino, autor do roteiro de quase todos os seus filmes e também de contos e romances que originaram boa parte dos trabalhos de Brant.

Aliás, "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" adapta romance homônimo de Aquino, publicado em 2005. É também o segundo longa que Brant assina com o velho amigo e parceiro Renato Ciasca.

"Sátántangó", de Béla Tarr

O acontecimento cinematográfico do ano em Belo Horizonte tem dia, hora, lugar e tempo de duração marcados. Amanhã [5 de setembro], às 14h30, no Oi Futuro Klauss Vianna, começa a projeção de "Sátántangó", filme monumental do diretor húngaro Béla Tarr, com 7 horas e 30 minutos de duração - divididas em 12 partes e dois intervalos.

O longa, em película 35mm, foi trazido à capital pela produtora Zeta Filmes para a retrospectiva de Tarr, uma das atrações da mostra Indie 2011, cuja programação segue até a próxima quinta-feira. Lançado em 1994, "Sátántangó" (em português, seria "o tango de Satã") adapta o romance de László Krasznahorkailogo. O autor colaborou no roteiro do filme.

O enredo acompanha o cotidiano numa fazenda coletiva da Hungria que entra em colapso durante um rigoroso inverno. Ao mesmo tempo em que os trabalhadores recebem uma quantia financeira como indenização, eles ficam temerosos ao saberem que um antigo morador do local - com fama de feiticeiro e bruxo - estaria voltando.

"Sátántangó" foi considerado a obra-prima de Tarr, diretor cuja carreira se iniciara em 1977 com "Ninho Familiar" e tivera uma primeira grande guinada em 1987 com "Maldição" (também conhecido por "Danação" ou "Condenação"). O filme foi recebido com entusiasmo nos meios culturais, incluindo um ensaio elogioso da escritora Susan Sontag (1933-2004), no qual ela o considerava "devastador e apaixonante em cada minuto de suas sete horas". E completava: "Eu ficaria feliz em vê-lo todos os anos pelo resto da minha vida".

Para Ranieri Brandão, crítico de cinema e editor da revista eletrônica Filmologia (www.filmologia.com.br), é em "Sátántangó" que Tarr atinge a plenitude narrativa, tanto material quanto espiritual. "É aqui que, finalmente, aquela espécie de ‘frações de mundo’ de seus outros filmes se acomodam numa narração mais pautada, mais limpa e controlada pelo diretor", frisa Brandão.

O crítico aponta um caráter de apocalipse iminente em toda a obra de Béla Tarr, cujo ápice se dá em "Sátántangó". Brandão acredita que o tom de fim do mundo se deva à queda do comunismo na Hungria, ocorrida em 1989 após 42 anos de regime. "Essa mudança histórica serviu ao filme para o estabelecimento do cenário, o clima de abandono, a deterioração dos espaços no país", afirma o crítico. "O mundo que se abre para a Hungria de Tarr, depois do regime, é extremamente misterioso e material demais e está explicitado nas paredes descascadas e sujas".

Béla Tarr - hoje com 56 anos de idade e, segundo ele mesmo revelou no Festival de Berlim em fevereiro deste ano, aposentado do cinema depois de "O Cavalo de Turim", seu filme mais recente (e incluído no Indie) - diz ter se inspirado na cadência do tango para estruturar o filme, com a ideia de seis passos para a frente e seis para trás. O ritmo está impresso no desenvolvimento marcadamente redundante dos personagens e na própria separação em 12 capítulos.

Esteticamente, o filme leva ao ápice o rigor do cineasta. Não apenas pelas mais de sete horas de duração, mas pelo ritmo racionalista, de planos fixos e movimentos de câmera lentíssimos, enquadrados pela fotografia em preto e branco de Gábor Medvigy. "Tarr talvez queira dizer muito pouco, mas a intensidade do que diz faz valer cada minuto", escreve a curadora Francesca Azzi no catálogo do Indie. "Cada evento (no filme) é contado mais de uma vez, sob um outro ponto de vista, criando um quebra-cabeças engenhoso e soturno".

DVD. Uma boa notícia é de que a distribuidora Lume Filmes confirmou o lançamento, para 2012, do longa de Béla Tarr no formato DVD, em três discos. "É um filme ousado em todos aspectos, desde sua narrativa, os longos planos, seus silêncios e sua duração", diz Frederico Machado, proprietário da Lume. "Compartilhar esse trabalho para o grande público é uma satisfação que nos move".