domingo, 28 de agosto de 2011

Johnnie To pós-2005: domesticação com liberdade


O mundo dos festivais ocidentais de cinema descobre Johnnie To a partir de 2005. É o ano em que Eleição – O Submundo do Poder compete pela Palma de Ouro no Festival de Cannes. E é o ano em que o cineasta recebe olhares curiosos de diversas partes do mundo que permaneciam alheias à prolífica produção deste realizador de Hong Kong. Os downloads de seus filmes disparam nas comunidades virtuais, a cobrança para que distribuidoras o lancem nos circuitos locais aumenta e a curiosidade por cada novo trabalho é proporcional ao deleite com que são recebidos quando finalmente vistos (por vias oficiais ou não). Daquele seminal 2005 em diante, To vai aparecer em todos os outros grandes eventos de cinema do mundo – em Veneza, com Mad Detective (2007 – em parceria com Wai Ka-fai) e Exilados (2006); em Berlim, com Sparrow(2008); de volta a Cannes, tanto na mostra competitiva com Vengeance (2009) quanto em seleções paralelas, exibindo Eleição 2 (2006) e Triangle (2007 – em parceria com Tsui Hark e Ringo Lam).

Mudou To ou mudaram os festivais? Coincidência ou não, é nesta fase que o cinema dele se apresenta mais “domesticado” – e aqui não se quer colocar nenhum caráter pejorativo ao termo. Se até 2005 a estética de To se baseava num fluxo contínuo de ação e reação, com a câmera quase sempre captando o que era mais plausível de captar dentro do espaço, sem com isso parecer que a câmera soubesse onde deveria estar (pensemos na sequência final de A Hero Never Dies, de 1998), o To pós-Eleição vai deixar muito mais evidente a mise en scène: a movimentação dos corpos estará mais “bailada”, os enquadramentos serão milimetricamente construídos para aproveitar ao máximo o que permite o formatoscope, os atores estarão muito mais dependentes de marcação, as coreografias de lutas e tiroteios vão aparentar uma correção visual bem menos anárquica. Será – buscando aqui as definições de Rogério Sganzerla – uma câmera muito mais ideal do que possível, um tipo de cinema mais “limpo” do que “sujo”, uma disposição de elementos bastante mais explícita na medida em que surjam as necessidades e possibilidades do quadro.

Por esse processo de “limpeza”, o cinema de Johnnie To conquistou as plateias (e curadores de festivais) que até então não tinham olhado para ele com a devida atenção. Desde John Woo um cineasta de Hong Kong não era tão cultuado fora de seu território – e, ironicamente, os ocidentais só perceberam o que existia no passado de Woo quando, depois de anos de atividade na terra natal, ele foi filmar nos EUA, onde estreou em 1993 com O Alvo, protagonizado por Jean-Claude Van Damme. Mais irônico é que To tenha sido descoberto pelos festivais do Ocidente com um filme que nem possui as características mais notáveis de seu cinema. Eleição, ainda que de elaboradíssima conceituação formal, não tem tiros, aproveita-se do excesso de personagens para montar o drama central e se configura muito mais como um “filme de máfia”, no sentido tradicional do termo, do que necessariamente “um filme de máfia de Johnnie To”. Daí, talvez, a impressão (muitas vezes incômoda) de se estar assistindo, durante Eleição, a um piloto de série de televisão.

É na continuação do filme que To demonstra muito de seu modo de trabalho. Mesmo que permanecendo dentro das “regras” criadas por ele mesmo para o primeiro Eleição(nada de tiros, ênfase nas negociações e trapaças políticas, personagens que vão e vêm), Eleição 2 – A Tríade se sustenta menos nos meandros das artimanhas pelo controle da máfia de Hong Kong do que na trajetória do protagonista Jimmy Lee – o que se vê, de fato, é uma simbiose entre os dois temas do filme, um alimentando o outro. E, disso, To entrega algumas das cenas mais marcantes de todo o seu cinema. Transformando a morte num ritual de dolorosa penitência (a quem provoca e a quem é vítima), o diretor faz dos constantes instantes de assassinato de Eleição 2 grandes marchas fúnebres, via uso da música, da câmera que passeia pelas imagens com muita calma e da própria face de quem está na tela. O filme se torna um impressionante acúmulo de violência, algumas de um barbarismo primitivo (exemplo máximo: a cena dos cachorros). O inferno em Eleição 2 é bem ali, em Hong Kong.

Estão ausentes deste díptico ao menos dois elementos que apareciam com força em filmes anteriores. Um é a autoridade policial como instância reguladora e cumpridora das leis. A polícia fora fundamental em Jogo da Vingança(Running Out of Time, 1999), com o agente sendo um antagonista à altura do bandido, e em The Big Heat(1988), cujos créditos iniciais se dão durante um videoclipe da polícia em ação; e a imagem da justiça e autoridade foi figura-chave pelo menos em Fireline (1997), que narra o cotidiano de uma equipe de bombeiros, e em PTU – Police Tactical Unit (2003), sobre o qual o título já diz tudo. Já nos dois Eleição, existe a polícia, mas ela ou faz vista grossa para a ação das tríades, preferindo acordos informais em vez do enfrentamento puro e simples (primeiro filme), ou está quase completamente ausente, aparecendo protocolarmente em um ou dois momentos (segundo filme). O mundo existente nessa dupla de filmes está tomado pelas tríades, e elas comandam os rumos de todos – inclusive das próximas gerações, como se pode constatar no desfecho pessimista de Eleição 2, em que tanto um lado quanto o outro dos “guerreiros” que digladiam pelo poder é obrigado a condenar os filhos a um futuro de caos e violência.

A polícia surge com maior presença em outros filmes realizados por To depois de Eleição, ao menos de duas formas: ou na chave do deboche e da ironia, caso de Exilados, em que há um agente que sempre aparece na hora dos enfrentamentos entre bandidos, mas nunca interfere na ação – ele conta as horas para se aposentar, diz estar sempre “de passagem” e telefona pessoalmente ao líder mafioso, pedindo que o proteja; ou como instância da ingenuidade em meio ao fogo cruzado, como emTriangle, no qual o policial aparece pouco além da metade do filme e é fundamental para a redenção do trio protagonista, ainda que suas atitudes (enquanto autoridade) contem pouco para isso.

O outro elemento ausente do díptico Eleição – mas presente nos filmes posteriores e anteriores de To – é a camaradagem entre os personagens. O próprio diretor é ele mesmo adepto das amizades no âmbito profissional. Começou a carreira trabalhando com Tsui Hark, tem alguns filmes em parceria com Wai Ka-fai (o mais recente sendo Mad Detective, já da fase atual) e é daqueles cineastas que utilizam os mesmos atores em diversos títulos, à moda de John Ford, John Cassavetes, Ingmar Bergman, Woody Allen e Martin Scorsese – no caso de To, algumas figuras sempre reconhecíveis são Ching Wan Lau, Simon Yam, Francis Ng e Suet Lam. [Se os nomes são difíceis de vincular aos rostos, uma rápida pesquisa no Google Images esclarece quem é quem.] Recentemente, To voltou a dividir a direção com dois colegas de país e profissão – o supracitado Hark e Ringo Lam – num filme que celebra justamente esse companheirismo intrínseco ao universo de To.

Porque, por mais violentas que sejam as regras dos mundos de crime inventados por Johnnie To, elas estarão sempre um degrau abaixo da manutenção dos laços fraternos. Não é algo recente – na verdade, permeia a obra do cineasta, tornando-se mesmo uma questão emThe Mission (1999) e atingindo tons míticos na carnificina final de Exilados. O passado, nestes filmes, se transforma em propulsor para o presente. Os filmes se rendem ao amor existente entre os personagens e não precisam se justificar enquanto obra artística para reforçar as relações: em Exilados, a imagem que revela o antigo envolvimento do quinteto protagonista aparece por duas vezes, numa mesma foto, e essa imagem pipoca na tela sem qualquer “motivo” da diegese. Ela é a representação pura e simples da principal questão do filme, e a força “superiora” do realizador a insere entre uma cena e outra, completando o ciclo daqueles amigos malfadados. Em Sparrow, os batedores de carteira deixam um pouco de lado o “ofício” e se unem para auxiliar uma bela mulher a escapar de um homem que insiste em persegui-la – e levam ao limite máximo não apenas a fidelidade uns aos outros, mas o compromisso informal de proteger a mulher.

Os filmes de Johnnie To a partir de 2005 são quase todos passíveis de se enquadrar no gênero da ação. O diretor sempre trabalhou nessa seara, mas tomou rumo contínuo, talvez influenciado pela receptividade pós-Eleição. E To, assim como o conterrâneo John Woo (mas de maneira bem distinta), faz da ação – corpos, tiros, movimentação no espaço – pura arte. É significativa e fundamental sua preferência por locais fechados, o que lhe permite dominar com mais apuro cada gesto dos atores e do próprio lugar. Exilados, nesse sentido, é uma de suas realizações mais notáveis, pois não apenas desenvolve todas as grandes cenas em ambientes hermeticamente trancados, como utiliza o que estiver à disposição no próprio espaço – portas, tapetes, janelas, macas de enfermaria, cortinas, mesas, latas de RedBull. Mad Detective, por outro lado, tem um dos mais belos plongées da carreira de To, justamente o plano final, em que assistimos ao protagonista, num galpão, realizar um autêntico quebra-cabeças no troca-troca de armas – um quebra-cabeças só compreensível pelo personagem, mas uma maravilha de ser testemunhado pelo espectador.

Mesmo quando a ação se obriga a ser num local externo, como é no fim de Triangle, To dá um jeito: a sequência (dirigida por ele, dentro do trabalho dividido no qual se constitui o filme) é toda num milharal de altas folhagens, onde é impossível enxergar para além do próprio nariz – o que permite, por exemplo, alguém poder engatinhar e entregar uma arma a outra pessoa sem que o inimigo, posicionado a poucos metros de distância, consiga perceber a movimentação. Sparrow também tem o clímax em lugar aberto – uma travessia de rua com dezenas de pessoas caminhando –, e novamente To realiza um feito brilhante, ao “fechar” os personagens debaixo de guarda-chuvas e fazê-los se confrontarem dentro dos limites possíveis de se enxergar ou se movimentar devido ao uso da bugiganga. Até a água da chuva, aqui, ganha importância salutar. É desse uso do espaço como aliado da ação – ou, mais que isso, como participante ativo – que a forma dada por Johnnie To em seus filmes a um gênero tão combalido consegue extrapolar a mera categorização.

E essas cenas são todas de um realismo exemplar – um realismo que não quer ser realidade (vide o sangue digital que estoura dos corpos de Exilados), mas, sim, expor na imagem uma forma de ser real através de si mesma, fazendo o espectador acreditar na possibilidade de aqueles homens e mulheres existirem dentro da tela. A representação na tela serve ao filme muito mais do que a realidade serviria aos personagens – e eles, obviamente, são integrantes dessa representação. Com tal liberdade de atuação, Johnnie To faz a selvageria correr solta. Não há tempo para muita estratégia a quem se arrisca a ser cria do cinema de To. Ainda nessa urgência, a montagem é movida a cortes que dão atenção suficiente a cada movimento, a toda a compreensão do fato, ao respiro necessário para que não se atropele a própria beleza daqueles bailados, na maioria das vezes, à base de pólvora (mas também de sopapos, cacetadas, afanações e respingos d’água).

No único filme desta fase do diretor em que há elementos sobrenaturais (Mad Detective), o que conta não é a verossimilhança típica de um mundo dito “normal” (portanto, nossos amigos verossímeis, como diria Hitchcock, não serão atendidos por To). Vale é o uso da ficção no desenvolvimento de um universo moldado para aqueles sujeitos enquadrados pela câmera, a total imersão na movimentação e o extravasamento da lógica como meio de se atingir o sentido e a catarse da cena. Fazer isso com coesão, elegância, beleza, maravilhamento e completo prazer – eis o que torna Johnnie To um grande artista de imagens e sons.

*Publicado na edição 94 da revista "Contracampo"

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Vincenzo Amato e "Sobre a Neblina"

"Hoje não teve carrapatos", comemora Vincenzo Amato, protagonista de "Sobre a Neblina", o primeiro longa de ficção de Paula Gaitán. Num intervalo das filmagens, na sexta-feira passada, o ator italiano, ainda trajando vestes de seu personagem, conversou com o Magazine defronte à cabana de beira de estrada, perto de Cataguases, que serviu de cenário ao filme.

Vincenzo, 45, é conhecido de quem acompanha a produção de seu país. Encabeçou o elenco de "Respiro" (2002) e "Novo Mundo" (2006 - na foto), ambos dirigidos por Emanuele Crialese, um dos mais expressivos nomes do atual cinema italiano. Nos EUA, onde mora, fez outros trabalhos, como "Cadê os Morgan?" (2009).

É a primeira vinda de Vincenzo a Minas Gerais – mas não ao Brasil. "Estive outras três vezes, sempre no Rio de Janeiro", conta. Foi na capital carioca que ele jantou com Paula Gaitán, ocasião na qual ela apresentou ao ator o roteiro de "Sobre a Neblina", há dois anos. "Fiquei encantado com o que li. Já estava querendo filmar na América Latina, e esse projeto surgiu de maneira perfeita. Recusei dois trabalhos na Itália para estar aqui".

Ele não pretende ler o livro de Christiane Tassis enquanto filma. "O que me interessou foi a história daquele roteiro. É ela que vou viver, e acho que seria muito confuso enxergá-la como alguma outra coisa".

O português perfeito de Vincenzo Amato surpreende a qualquer interlocutor. Parece não haver palavra que ele não saiba, e mesmo seu sotaque fica abafado pela fluência na língua. Qual o segredo? "Música", responde, de imediato. "Aprendi português ouvindo cantores brasileiros. Caetano Veloso, por exemplo, é o maestro da minha vida. Ouço o tempo todo".

Igualmente fã de Noel Rosa, Vincenzo é embalado pelas canções do país também durante as criações em sua área de origem, as artes plásticas. Foi para desenvolver técnicas com ferro que ele se mudou para Nova York em 1993. Num puro acaso – saiu para fumar na escadaria do prédio onde morava –, conheceu Crialese, seu vizinho e então jovem cineasta em busca do primeiro projeto.

Perguntado qual o diretor italiano que mais lhe agrada, Vincenzo também é rápido e cita Vittorio De Sica (1901–1974). "É o melhor, não é? Sempre me emociona", assume.

Já animado com a paisagem e as pessoas que têm conhecido em Minas Gerais, Vincenzo se prepara para vir filmar nos arredores de Belo Horizonte. Será um ar novo depois de várias cenas em meio à natureza, incluindo serras, barrancos, lagoas e matagais. Na verdade, a capital mineira será só a base para que ele siga a locais como a serra do Curral, onde há cenas previstas.

A grande preocupação de Vincenzo, porém, é uma só: "Em Belo Horizonte tem carrapatos?". Ao ouvir um "não", ele fica aliviado.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 26.8.2011

"Sobre a Neblina": no set com Paula Gaitán

No pequeno distrito de Aracati, a 23 Km de Cataguases (por sua vez, distante 305 Km de Belo Horizonte), uma equipe de filmagem ocupa uma pequena casa à beira da ainda ativa linha férrea. O trem passa três a quatro vezes ao dia. Numa de suas idas e vindas, o veículo foi filmado pela equipe. "Ficou um plano muito lindo", diz alguém à cineasta Paula Gaitán.

É ela a coordenadora de tudo ali, no set de seu primeiro longa-metragem de ficção, "Sobre a Neblina". O Magazine acompanhou com exclusividade um dia de trabalho de Paula e companhia, na última sexta-feira. Todos estão na região de Cataguases desde o dia 12 de agosto e seguem por lá até 3 de setembro, quando virão a Belo Horizonte para fazerem cenas na serra do Curral.

"Sobre a Neblina" será totalmente filmado em Minas Gerais, com apoio da Energisa. O longa adapta o primeiro romance da escritora Christiane Tassis, natural de Governador Valadares. Tassis lançou o livro em 2006, após ganhar a Bolsa Flip de Criação Literária.

"Sempre achei o livro muito cinematográfico", conta Paula Gaitán, experiente em documentários. "A leitura de ‘Sobre a Neblina’ me deflagrou algo que é diferente dele mesmo".

Essa deflagração a qual alude a diretora foi o estopim para ela assumir que precisava se afastar da adaptação pura e simples da narrativa de Tassis e mergulhar em caminhos artísticos próprios. "O argumento foi uma inspiração, a partir de personagens exilados de seu próprio espaço. A neblina é a representação desse exílio", reflete Paula.

O livro conta a história de Henrique, fotógrafo doente e prestes a perder a memória. Na ânsia por não se deixar desaparecer pelo esquecimento, ele pede a uma jornalista (e ex-amante) que escreva sua biografia a partir de conversas com quatro mulheres com quem ele se relacionou no passado.

Com equipe reduzida (aproximadamente 30 pessoas) e orçamento igualmente mínimo de R$ 500 mil, Paula Gaitán tem levado a experiência de filmes miuras para um projeto que lhe demanda outros tipos de atenção - como lidar com atores, maquiadores e figurinistas. Mesmo assim, ela não vê tantas diferenças na sua forma de enxergar o que está criando.

"Eu já fazia ficção, como ‘Diário de Sintra’, mas insistem em chamar de documentário. Então muda pouca coisa", desabafa. E brinca: "Na verdade, me sinto mais confortável, sou paparicada de todos os lados e consigo almoçar na hora certa!".

Paula se cercou de profissionais de sua estima para realizar "Sobre a Neblina". Nascida em Paris em 1952 e radicada na América Latina (filha de um colombiano com uma brasileira, cresceu e fez carreira circulando no continente), ela sabe como reunir uma equipe "interglobal". O protagonista, Vincenzo Amato, é italiano (veja na página 2); o diretor de fotografia, Inti Briones, nasceu no Peru e se radicou no Chile, onde fez vários projetos com o recém-falecido Raúl Ruiz; e o produtor do filme, Eryk Rocha, é filho de Paula com o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) e igualmente um apaixonado pela América Latina e pela mistura de povos e culturas.

Além disso, Paula segue fazendo filmes de forte feminilidade - como eram "Diário de Sintra", "Vida" e "Agreste" - e conta com diversas atrizes no elenco de "Sobre a Neblina", entre elas Simone Spoladore, Bel Garcia e Clara Choveaux.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 26.8.2011

**Na foto, de Igor Pontini, está a atriz Clara Choveaux

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

30 depois de Glauber - parte 3: Ruy Gardnier

Entrevista com Ruy Gardnier, crítico de cinema e pesquisador do Tempo Glauber.

O que ficou ou permanece da passagem de Glauber pela cultura brasileira?
Do ponto de vista da cultura dominante, não permanece basicamente nada. Ideologicamente vivemos uma cultura do consenso, e Glauber Rocha vivia pela controvérsia e confrontação. Vivemos um período racionalista (apesar dos obscurantismos religiosos), e Glauber vivia em estado profético, delirante. No mundo do cinema, também não poderia estar mais longe. A estratégia estatal corrente de dar dinheiro majoritariamente para projetos grandes, com tramas vulgares e linguagem subtelevisiva, certamente lhe daria nojo. Ele acreditava na força do cinema e da arte em geral para friccionar a sensibilidade do espectador através de experiências audiovisuais que ultrapassam as percepções cotidianas.

Qual foi a importância de Glauber para o momento histórico no qual ele atuou?
Ele foi fundamental como cineasta, como ideólogo de cinema, de cultura brasileira e de política. Suas ostensivas ações na imprensa, como articulista ou entrevistado, sempre com declarações bombásticas, o situavam como um pensador original, que não se aliava nem às posições reinantes da esquerda comunista ou ex-comunista nem tampouco às posições da direita. Foi sua ação como ideólogo do Cinema Novo que impulsionou os intelectuais brasileiros a discutir nosso cinema a sério. Como cineasta, Glauber Rocha segue sendo o mais importante que o Brasil já teve. Ele foi o primeiro intelectual brasileiro a apostar na abertura (em vocabulário da época, "distensão") política vinda a partir da presidência de Ernesto Geisel e criou, com suas inserções no programa "Abertura", um verdadeiro fórum para discutir catarticamente sobre cultura e política no Brasil, algo sem par até hoje.

É possível "separar" a obra de Glauber em fases?
É possível perceber uma incrível consistência na trajetória de Glauber, que muda a partir de certas coordenadas, mas sempre baseadas num mesmo tipo de premissa ou clareza de pensamento. Igualmente fascinado por Jorge Amado e pelo formalismo cinematográfico, Glauber desde cedo teve algo de catártico, de operístico, de grandioso em seu estilo e, ao mesmo tempo, acreditava nas experiências de linguagem de modo a friccionar a percepção de seus espectadores. Essa primeira parte era o que consistia o "épico", e a segunda o "didático" do modelo "épico-didático" que ele tanto admirava em Brecht. Mas claramente existe uma intensificação, ou um radicalismo, a partir de 1969.

Seria possível imaginarmos Glauber Rocha no cinema brasileiro de hoje?
Não. Mesmo os grandes cineastas contemporâneos que poderíamos longinquamente associar são bastante civilizados. Glauber tinha um componente de selvageria, de violência da linguagem, que inexiste no cinema de hoje. Mas, também, os tempos são outros.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011

30 anos depois de Glauber - parte 2: Eduardo Escorel

Dos filmes que tornaram Glauber Rocha um nome internacionalmente conhecido, "Terra em Transe" e "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (ambos premiados no Festival de Cannes, com troféu de júri da crítica e melhor direção, respectivamente) foram feitos no Brasil; "O Leão de Sete Cabeças", na África; e "Cabeças Cortadas" (1970), na Espanha.

Todos os quatro filmes - cuja evolução de um a outro marca uma ruptura dentro da obra de Glauber - foram montados por Eduardo Escorel. Aos 66 anos, o paulista radicado no Rio de Janeiro é um dos nomes mais importantes em atividade no audiovisual do país. Ele teve um breve primeiro contato com Glauber em 1962, quando o diretor já havia feito seu primeiro longa na Bahia, "Barravento". Escorel tinha 17 anos e fazia um curso de cinema.

Tempos depois, ambos firmaram a bem-sucedida parceria. "Voltei a me relacionar com ele, já profissionalmente, em janeiro de 1966, quando fui ao Maranhão fazer o som direto do curta ‘Maranhão 66’, que ele dirigiu", relembra Escorel, que tinha acabado de montar "O Padre e a Moça" (1965), seu primeiro trabalho em ficção, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.

Provavelmente devido a isso (Glauber admirava o filme de Joaquim), Escorel foi convidado a participar de "Terra em Transe". O período de Escorel e Glauber juntos foi relativamente curto: quatro filmes em três anos. "O Leão de Sete Cabeças" foi montado em Roma (Itália); "Cabeças Cortadas", em Barcelona (Espanha).

Escorel lembra que o processo de montagem de "Terra em Transe", ao longo de seis meses na ilha de edição, foi distinto dos demais, tanto na presença mais maciça de Glauber quanto na maneira de o cineasta organizar o filme. "Havia um campo aberto para experimentar, fazer tentativas e traçar caminhos. O Glauber sempre queria inventar alguma coisa. O roteiro era um filme, a filmagem se tornava outro filme e a montagem criava um terceiro, bem diferente".

Para o montador, algo que fazia de Glauber um artista era a insatisfação e a recusa com as formas narrativas convencionais. "Ele estava sempre buscando algo que fosse transgressivo e contra os padrões".

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011

30 anos depois de Glauber - parte 1


"O Terceiro Mundo está de luto". Assim iniciava um dos artigos mais viscerais já publicados na imprensa brasileira. Era 24 de agosto de 1981, e Rogério Sganzerla assinava na "Folha de S.Paulo" o texto "Necrológio de um Gênio", emocionado obituário de Glauber Rocha, morto dois dias antes, aos 42 anos. Amanhã completam-se 30 anos desde o falecimento do cineasta. E o Terceiro Mundo continua de luto.

A lacuna de Glauber jamais foi preenchida. Na verdade, a se considerar o impacto de sua obra e a constante rememoração de seus trabalhos, ele nunca precisou de um substituto. Como diz Joel Pizzini, que trabalhou na restauração de vários filmes do diretor, "não foram 30 anos sem Glauber. Foram 30 anos depois de Glauber".

A imagem icônica do baiano nascido em 1939 no município de Vitória da Conquista nunca foi despregada do olhar e sensibilidade de centenas de brasileiros. Glauber não foi só o realizador de trabalhos fundamentais como "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e "Terra em Transe" (1967). Foi também um agitador cultural dos mais ativos. Controverso, falastrão, excessivo, genial e genioso - ou, novamente por Sganzerla, "concertista-mor, artífice de brilhantes obras cinematográficas, arranjador, encenador e coreógrafo do estranho balé do subdesenvolvimento". Em 1975, o ensaísta Paulo Emílio Sales Gomes vaticinou: "Glauber Rocha é profeta alado. Ele é uma de nossas forças, e nós, Brasil, a sua fragilidade".

"Glauber trabalhou com os mitos fundadores da nossa cultura, da nossa identidade e do poder", define o cineasta Joel Pizzini. "Seus filmes continuam na ordem do dia, pois o cinema dele aborda questões que ainda não foram digeridas, atravessando vários registros num diálogo contínuo com todas as outras artes".

Para o crítico e pesquisador Ruy Gardnier - que trabalhou como arquivista no Tempo Glauber (leia mais no quadro abaixo) -, a pecha de artista de difícil entendimento (que insiste em permanecer em muitos círculos quando se sequer se pronuncia o nome de Glauber Rocha) aconteceu de repente, de 1970 em diante, a partir do lançamento de "O Leão de Sete Cabeças".

"De um ano para outro, ele perde o status de um dos cineastas mais badalados do jovem cinema de autor contestador (junto com Jean-Luc Godard e Pier Paolo Pasolini, entre outros) e se transforma num diretor de ‘linguagem difícil, árida’, que é como o considerarão, a partir daí, os admiradores de seus filmes dos anos 60", comenta Gardnier. "Era uma tendência, mas a regressão foi brutal. Glauber se radicalizou e o público encaretou".

A efeméride pela partida de Glauber Rocha há três décadas será celebrada amanhã à tarde no plenário do Senado Federal, a pedido da senadora Lídice da Mata (PSB-BA). A mãe do cineasta, dona Lúcia Rocha, 92, confirmou presença. Em outra homenagem pública, a TV Senado vem exibindo, desde o último dia 7, vários longas-metragens de Glauber, sempre aos domingos, às 21h. Hoje é a vez de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Na semana que vem, passa "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969).

Acervo está com a Cinemateca Brasileira
Na última semana, o Tempo Glauber passou por um sufoco. Devido a um erro burocrático, a Secretaria do Audiovisual (SAV) cancelou o convênio firmado para manter a instituição em funcionamento.

Somente na quinta-feira a situação de alarme teve um respiro, quando Paloma Rocha, 51, primogênita de Glauber, recebeu novas informações do Ministério da Cultura. "Temos garantia de manutenção para pelo menos até dezembro. Depois, ainda é incerto", disse ela, que precisou demitir funcionários por conta da confusão da SAV.

O Tempo Glauber é o principal espaço a preservar e difundir tudo relacionado ao cineasta baiano. Localizado no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, foi fundado em 1989, depois de árdua batalha de seis anos da mãe de Glauber, dona Lúcia Rocha, no intuito de manter a memória do filho e abrir seus arquivos a quem se interessasse.

Recentemente, a Cinemateca Brasileira comprou boa parte do material do Tempo Glauber, incluindo os filmes e mais 22 mil documentos, entre roteiros, peças, romances e anotações. "É uma maneira de dar sobrevida aos originais e ampliar a difusão, numa data importante como a de agora", diz Paloma. "A memória de meu pai está garantida e tenho o sentimento de dever cumprido".

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011

"Lola", de Brillante Mendoza

Por nunca ter estreado antes no circuito brasileiro, o cinema do filipino Brillante Mendoza é pouco conhecido no país. Uma pena, visto ser não apenas um cineasta de forte expressividade, mas também porque o universo abordado por ele tem muitas semelhanças com a realidade brasileira. "Kinatay" (2009), premiado em Cannes, poderia perfeitamente ser ambientado em alguma metrópole brasileira, se os realizadores daqui bancassem uma produção tão brutal.

Mas é de "Lola" que cá estamos a falar. Exibido em 2010 no Festival de Veneza, trata-se do mais recente filme de Mendoza, e talvez o mais doce. A família, centro nervoso de "Serbis" (2008), ganha novos contornos, desta vez sob o olhar vivido e sofrido de duas senhoras que parecem sobreviventes de uma Manila sempre sob chuva, violência e incerteza.

Uma delas é avó de um rapaz morto a facadas nas ruas da cidade; a outra tem o mesmo laço sanguíneo justamente com o assassino do garoto. Serão caminhos cruzados pela tragédia e pelo acaso, atados por circunstâncias econômicas e sociais que fazem com que a dor das duas, apesar das diferenças de situação (uma está em luto; a outra, em vigília), aproxime-se de desesperos muito parecidos.

Um dos encantamentos de "Lola", mesmo diante de momentos tão tristes e imagens tão doídas, é a interpretação das atrizes Anita Linda e Rustica Carpio. Ambas são as "lolas" (termo usado nas Filipinas como tratamento a senhoras de terceira idade, equivalente a "vovó"), que servem de catalisador para Mendoza retratar um mundo palpável e cheio de arestas e nuances difíceis de definir. A linguagem beira o documental, sem nunca deixar de ser ficção, encenação, criação de realidade. Será da transparência do procedimento que emergirá a verdade vinda da tela, como se aquilo tudo estivesse acontecendo no exato instante em que assistimos ao filme.

Mendoza é desses cineastas que utilizam o máximo de artifícios cênicos para dar a ilusão de que nenhum artifício foi utilizado. É a forma de nos fazer mergulhar numa narrativa de complexidade puramente humana, na qual tomamos contato com figuras que não conhecemos nem nunca vimos antes, mas, de repente, percebemos o quanto nos importamos com elas.

Daí vêm cenas pequenas e muito significativas, como a fotografia de olhos fechados, as conversas na prisão, o velório do neto numa cerimônia em cima de botes e a conversa definitiva, que dará o desenlace de um conflito aparentemente banal e, tanto por isso, profundamente relevante dentro de um contexto muito maior.

Sem a busca pelo choque que marcou "Tirador" (2007), "Serbis" e "Kinatay", Brillante Mendoza não deixa de lado a brutalidade, desta vez inserindo-a menos nas imagens do que no contexto, menos nos recursos audiovisuais do que na face enrugada de duas idosas ainda à deriva no mundo.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 22.8.2011

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

"Giallo", de Dario Argento

Profondo giallo
Filme mais recente de Dario Argento, Giallo (2009) reconfigura para o século XXI o estilo de suspense típico do cinema da Itália nos anos 70

No italiano, a palavra “giallo” significa “amarelo”. Livrinhos de bolso contendo histórias de crime e mistério eram apelidados de “giallos”, por conta das capinhas amarelas que os caracterizavam e facilitavam serem reconhecidos nas bancas italianas onde foram vendidos por muitos anos. E, a partir dos anos 70, “giallo” passou a definir um subgênero do filme policial popular italiano que se desenvolvia sob as “regras” das tramas narradas nos tais livrinhos: assassinos misteriosos, vítimas desesperadas, investigadores tentando desvendar o enigma, sexo, mortes múltiplas e bastante violência. Mario Bava foi um dos precursores dessa linhagem (1). Dario Argento fez o subgênero se firmar e se expandir para além das fronteiras do país.

É das lentes de Argento – com 69 anos e insistentemente ativo – que nasceu uma quarta acepção para “giallo”. Não poderia ser de forma menos sutil: o filme mais recente do diretor, lançado nos cinemas em 2009 (e apenas em DVD no Brasil(2)), tem justamente como título “Giallo” [por aqui, ainda recebeu o desnecessário adendo “Reféns do Medo”]. Pela escolha do nome do projeto e pelos instigantes cartazes apresentados durante a divulgação (um deles mostrava cinco enormes facas, sendo quatro em tom amarelo e uma, no meio das outras, de cor vermelha com gotas de sangue), a impressão era de que Argento estava voltando ao estilo que o consagrou – especialmente por O Pássaro das Plumas de Cristal (1971), Prelúdio para Matar (1975) e Tenebre (1982) – e o qual ele não visitava desde 2004, quando lançou o pouco compreendido O Jogador Misterioso.

Transcorridos alguns minutos de Giallo, percebe-se que o interesse de Argento não é exatamente revisitar o que fez em épocas passadas. Há diversos detalhes que negam o essencial: as mãos do assassino não têm as famosas luvas pretas; as vítimas não são mortas no local onde foram capturadas, sendo torturadas num esconderijo; a identidade do culpado é revelada com menos da metade da duração do longa. O próprio encaminhamento narrativo permite sentir o descarte do cineasta para com o tradicional “giallo”. Há, é certo, cenas e imagens que nos remetem àquele imaginário, como as armas perfurantes (facas e agulhas), os enquadramentos e travellings rigorosos e mesmo alguns instantes decalcados de outros filmes de Argento (a garota que sai atabalhoadamente na chuva, atrás de um táxi, lembra momento similar nos primeiros minutos de Suspiria, filme de 1977). Afinal, o que faz Argento em Giallo?

O suspense criado ao longo do filme é, ao mesmo tempo, a subversão da expectativa em torno do mito de Argento e uma sofisticada, e também grosseira, ironia do cineasta consigo mesmo e com o que ele tão bem fez em outros tempos. A grosseria, aqui, não tem conotação negativa. Um especialista em horror como Argento tem seus arroubos de grande esteta do mesmo jeito como é igualmente capaz de colocar em cena o vilão do filme se masturbando, de chupeta infantil na boca, enquanto assiste a fotos de suas vítimas com o rosto dilacerado.

A face e a beleza são as chaves para a compreensão e impacto de Giallo. Nos primeiros minutos de filme, um desfile de moda em Milão é contraposto a uma garota amordaçada e machucada num lugar fétido. Argento contrasta a noção sempre moderna do belo (moças bem vestidas e magras em cima de uma passarela) à feiura de um mundo sob o jugo constante da violência. Tanto no tema quanto na forma, Giallo será todo pautado pela noção do que seja bonito e feio. “Ele odeia coisas bonitas”, sussurra Enzo Avolfi, o detetive interpretado por Adrien Brody, referindo-se ao assassino serial que sequestra e mata belas estrangeiras de passagem pela Itália.

Não deixa de ser uma das várias ironias de Dario Argento. Durante muito tempo, ele foi apontado como um diretor misógino, devido à “preferência” em matar mulheres nos filmes, das formas mais variadas e cruéis. Em entrevistas, negou a acusação, afirmando que as mulheres (e sua beleza natural) são, na verdade, o combustível da criatividade. Em Giallo, Argento cria um matador que se move pela raiva ao belo: ele leva garotas ao covil e as “enfeia” antes de desovar os corpos. O cineasta, assim, assume uma carapuça que sempre refutou, dando ao espectador a figura assumidamente misógina de um criminoso perturbado.

Este matador é, por si só, essencial na concepção de Giallo. Chamado Flavio Volpe, o personagem sofre de uma doença hepática que dá um tom amarelado à sua pele, gerando o trauma de, desde criança, ser considerado feio e “amarelo” pelos colegas de escola. Ora, a referência é absolutamente explícita: num filme de nome Giallo, dirigido por um cineasta notabilizado pelo subgênero homônimo, o artífice da violência em cena é, ele mesmo, “giallo” [amarelo]. Trata-se de uma justificativa fantasiosamente científica para tornar o antagonista a encarnação física de uma forma de cinema. Argento consegue, sem criar “ruídos” estéticos ou narrativos, fazer metalinguagem com sutil eficácia. Por essa chave, subverte a própria trajetória sem, por isso, deixar de falar de si mesmo e dos filmes que realizou. Como acontece em relação aos melhores momentos da obra de Quentin Tarantino (vide o sublime Bastardos Inglórios), não é essencial conhecer a fundo os caminhos anteriores de Dario Argento para a fruição do filme. Sabê-los, porém, torna a experiência não apenas mais interessante, mas especialmente estimulante.

Um outro elemento de contraposição em Giallo é Avolfi, o investigador encarregado de achar o assassino. Na sua primeira aparição, ele está numa sala com paredes cobertas por fotografias de mulheres brutalmente assassinadas. Enquanto olha o espaço, Avolfi aperta uma bolinha, certamente para espantar a tensão. Eis a essência do personagem: um homem angustiado cercado pelo horror do sangue das vítimas do criminoso e pela impossibilidade de capturá-lo. O detetive é uma criação fundamentalmente de cinema: não tem vida para além do serviço e possui um passado traumatizante narrado em flashback via imagens de tons fotográficos perturbadoramente amarelos [de novo] e cujo estopim é uma faca de açougueiro guardada na gaveta do escritório.

A evidência do quanto Argento faz de Avolfi um ser moldado única e exclusivamente para estar no filme – e nunca a serviço de algum discurso exterior à imagem – é que o trauma da juventude e a existência da faca na gaveta não propriamente servem ao enredo de Giallo. Então, para que mostrá-los? Porque Argento acredita na vivacidade de Avolfi, na necessidade dele existir enquanto representação imagética possuidora de temperamento, visão, inteligência e um passado – mas não necessariamente um futuro, já que o filme vai acabar em algum momento e, junto disso, esvai-se esse personagem.

O procedimento de dar a Avolfi uma existência que serve menos à narração do que à organicidade de um universo puramente imagético e sonoro denota um dos elementos mais encantadores em todo o cinema de Dario Argento, e o qual Giallo resgata com brilhantismo: a crença total e irrestrita no poder da ficção. Por mais que tangencialmente reflita sobre a violência, a moda e os padrões de beleza, Argento não mergulha nesses temas com tanta voracidade como o faz na forma de colocá-los em cena. Ao diretor, interessa criar uma atmosfera de tensão a cada novo desdobramento do enredo, mesmo que tal enredo abuse dos tropeços e barrigas narrativas.

Basta pensar em como Giallo, mesmo subvertendo determinados elementos do suspense de serial killer e do próprio subgênero “giallo”, rende-se a alguns clichês vagabundos. Os mais gritantes são a tradicionalíssima perseguição (frustrada) do policial atrás do assassino, a pé; e uma montagem paralela que insinua um encontro entre os dois para, logo em seguida, revelar que ambos estão em espaços distintos e distantes [recurso muito bem trabalhado, por exemplo, no clímax de O Silêncio dos Inocentes]. Ainda assim, a construção das cenas, em todo o cuidado com o espaço como elemento constituinte do suspense, não parece um clichê puro e simples. Está mais para uma visita à tradição do filme policial como um gênero específico. Para se inserir e bagunçar essa tradição, é preciso deixar claro o fato de estar dentro dela. A diferença de Argento para outros cineastas que tentariam o mesmo tipo de “estratégia” é que o italiano não tem a menor vergonha de parecer ridículo ou retrógrado, pois tem consciência suficiente de até onde pode ir e conta com a cumplicidade do público em mergulhar junto dele num verdadeiro lamaçal de procedimentos levados à exaustão em mais de um século de história do cinema.

O desfecho de Giallo é também uma piscadela para a provocação. Flavio Volpe escondeu uma garota e pressiona a irmã da moça, Linda (Emmanuelle Seigner), a ajudá-lo a fugir do país. Avolfi segue atrás de Volpe e o encurrala. O criminoso despenca para a morte sem revelar o paradeiro da vítima. Tem-se uma primeira quebra: Avolfi e Linda discutem, ela chama o detetive de assassino e o compara ao vilão recém-falecido. “Você é igual a ele”, vocifera(3). Transtornado, ele sai andando de frente à câmera. Num longo plano frontal, a tela lentamente escurece, a trilha sonora vai num crescendo e, de repente, para, junto com o negro que toma a imagem. Poderia ser o fim (e vamos admitir: seria um final perfeito). Só que Argento insere um epílogo, no qual revela o destino da moça.

A imagem definitiva do filme, congelada durante os créditos, lembra alguns dos finais mais impactantes do cineasta, como os de Prelúdio para Matar e Tenebre. A essência é a mesma: o mal foi desfeito e a esperança renasceu, mas a dor e a violência (sempre representadas pela presença do sangue, de um vermelho profundo(4)) são dados onipresentes, dos quais ninguém consegue escapar, mesmo numa conclusão aparentemente bem resolvida.

Talvez a pouca inventividade visual mostrada aqui por Argento – se o parâmetro de comparação for a obra pregressa do italiano, cheia de instantes inesquecíveis, muitos deles geniais – possa ser prejudicial à boa fruição de Giallo. A péssima recepção ao anterior O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007) pode ter ajudado num possível desânimo com o que viria a seguir. Não raras vezes, desde quando começou a ser visto, Giallo tem sido taxado de “burocrático”, palavra meio maldita no universo das artes, por conotar falta de esmero e paixão durante o ato de criação e realização do trabalho em questão.

Seria injusto, porém, não se deter mais calmamente no que Argento nos oferece. Giallo extrai vida e prazer das quebras de expectativas, do excesso de pretensões e dos aparentes empurrões que vai dando no espectador. É um filme, à sua maneira, torto e manco, e tira das imperfeições a força de um cinema autêntico e preocupado com a potencialidade de uma imagem e de um corte de montagem. Numa contemporaneidade cinematográfica na qual o público parece vibrar mais com supostas espertezas de roteiro (Charlie Kaufman, Zach Braff, Diablo Cody, Guillermo Arriaga, Paul Haggis, Christophe Honoré) do que com o brilhantismo possível de ser atingido na mais límpida e aparente simplicidade (James Gray e Amantes, Clint Eastwood e Gran Torino, Alain Resnais e Medos Privados em Lugares Públicos, Paul Verhoeven e A Espiã, Olivier Assayas e Horas de Verão), contarmos com um cineasta como Dario Argento, ainda capaz de nos provocar dessa forma, de nos fazer vibrar por sua paixão em empunhar a câmera e de transmitir, mesmo que por vezes aos solavancos, a empolgação de narrar visualmente – tudo isso é um grande privilégio.

NOTAS

  1. Mario Bava (1914-1980) foi autor de uma filmografia fundamental na Itália e realizou alguns excepcionais exemplares do “giallo”, entre eles Seis Mulheres para o Assassino (1964) e Banho de Sangue (1971).

  2. A Califórnia Filmes, distribuidora de Giallo no Brasil, aparentemente no intuito de evitar pirataria, a empresa relegou o filme apenas às locadoras do país. Tiveram o mesmo destino os dois projetos anteriores do cineasta exibidos por aqui. O Jogador Misterioso (2004) saiu só em DVD pela Fox, e O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007) ganhou exclusiva edição digital da Swen.

  3. A frase de Linda tem um segundo sentido de provocação. Em Giallo, o ator Adrien Brody interpreta não apenas o investigador Enzo, mas também o próprio “assassino amarelo”, usando pesada maquiagem e sob o pseudônimo Byron Deirdra (anagrama de seu nome verdadeiro). Brody é ainda produtor executivo do filme.

  4. Prelúdio para Matar, considerado por muitos como a obra-prima de Argento (ou, no mínimo, o mais perfeito de todos os “giallos” italianos) é originalmente intitulado Profondo Rosso – em português, “vermelho profundo”. O sangue de fortíssima coloração, quase escarlate, é característico do subgênero.

    *Publicado na revista "Teorema" em dezembro de 2009

domingo, 14 de agosto de 2011

"Axilas e Outras Histórias Indecorosas", de Rubem Fonseca

"Um homem apaixonado é uma espécie de louco. É tipicamente um sentimento doloroso e patológico, porque, via de regra, o indivíduo perde a sua individualidade, a sua identidade e o seu poder de raciocínio".

O pensamento do narrador do conto "A Mulher do CEO", um dos 18 textos ficcionais inéditos contidos na antologia "Axilas e Outras Histórias Indecorosas", parece resumir à perfeição boa parte da obra literária de Rubem Fonseca.

Aos 86 anos, o escritor mineiro radicado no Rio de Janeiro retorna às livrarias depois da frustração proporcionada por seu último romance, "O Seminarista" (2009). Se este parecia um tanto apressado, como se Fonseca não estivesse tão a fim de concluir o próprio enredo que inventou, em "Axilas e Outras Histórias Indecorosas", ele demonstra ainda ter o vigor que o tornou um dos nomes mais relevantes da narrativa urbana brasileira. Há dezenas de imitadores, mas há apenas um Rubem Fonseca. São precisas poucas páginas para essa comprovação.

E de poucas páginas são os contos do livro, tanto quanto sucintos, diretos e muitas vezes desconcertantes. O universo do autor segue o de sempre: personagens do cotidiano inseridos em situações nas quais eles tomarão atitudes intensas a partir de pequenos gatilhos. Na maior parte das vezes, é a paixão avassaladora e instintiva que vai desencadear autênticas tragédias regadas a trapaças, mentiras, sangue e mortes, muitas mortes - como se tivessem sido arrancadas das páginas policiais de jornais populares.

Como nos momentos mais brilhantes de sua carreira, iniciada em 1963 com a publicação de "Os Prisioneiros", Fonseca trabalha o texto destituído de adjetivações. Em narrações de primeira pessoa, a ação corre solta, com um movimento imediatamente sendo seguido por outro. Não há fluxos de pensamento, reflexões, problematizações: sua literatura é a do choque, do imediato, da urgência, daquilo que vai explodir tão logo você passe para a linha de baixo.

Fonseca ainda se dá ao luxo de trabalhar referências e homenagens. Em alguns contos, é explícito (como a analogia a Edgar Allan Poe em "Mordida"); em outros, tangencial ("Paixão", novamente Poe; "Axilas", que fala em Machado de Assis); em mais uns, cita a si mesmo (em três contos há o delegado Guedes, personagem de seu romance "Bufo & Spallanzani"). O escritor também brinca com a língua, usando palavras provocativamente inesperadas ("cruciverbalista"), e com o próprio leitor, ao anunciar a veracidade de algumas situações evidentemente ficcionais.

É preciso reconhecer que Rubem Fonseca já não é o fenômeno criativo de épocas passadas. Mas é também justo dizer que um livro dele de qualidade continua sendo um imenso prazer aos olhos e à mente.

"Axilas e Outras Histórias Indecorosas"
Rubem Fonseca, ed. Nova Fronteira, 209 págs, R$ 39,90

*Publicado em "O Tempo" no dia 13.8.2011
**Foto: Associated Press

Gramado 2011: premiação e balanço geral

O júri da 39ª edição do tradicional festival de cinema realizado na Serra Gaúcha foi esperto. Num ano de poucos destaques na competição de longas-metragens brasileiros, decidiu-se por polarizar os Kikitos entre aqueles que mais força apresentaram ao longo da última semana. “Uma Longa Viagem”, documentário de Lucia Murat, saiu com os troféus de melhor filme e melhor ator (para Caio Blat, que reencena algumas passagens da vida do irmão da diretora, personagem central da produção).

Mas as premiações a “Riscado” (melhor direção para Gustavo Pizzi, atriz para Karine Telles e roteiro para os dois) e a “As Hiper Mulheres” (montagem e especial do júri) mostram que não houve uma adesão unânime a apenas um trabalho em competição. No caso específico deste ano, em que a própria seleção apresentou irregularidades de um trabalho a outro, fatiar os Kikitos foi uma solução bastante coerente e meritória.

“Uma Longa Viagem” foi apresentado em Gramado exatamente 22 anos depois de “Que Bom Te Ver Viva”, filme da mesma Lucia Murat, premiado no Festival de Brasília em 1989 e que utiliza procedimento bastante similar ao mais recente, tendo Irene Ravache em cena, durante registro das memórias de mulheres presas e torturadas no regime militar brasileiro.

“Naquela época, exibir o filme aqui era algo que me parecia muito duro”, disse a diretora, em emocionado discurso ontem, no Palácio dos Festivais. “Esse que fiz agora (‘Uma Longa Viagem’) foi muito importante e partiu da minha dor de perder um irmão. O medo de mostrá-lo ao público também era muito grande”. O filme já tinha ganhado prêmio da crítica no Festival de Paulínia, há poucas semanas.

Era a escolha natural e mais evidente do júri em Gramado. Apesar da força sensorial e fascinante de “As Hiper Mulheres” e da força narrativa e interpretativa de “Riscado”, dar um Kikito para Lucia Murat por “Uma Longa Viagem” é um prêmio não apenas ao filme, mas também a uma cineasta percorre notável e combativa trajetória no cinema brasileiro.

Murat coloca as próprias angústias na tela e sempre chamou atenção pelo teor político de seus trabalhos, tanto na ficção quanto no documentário. Ainda que “Uma Longa Viagem” tenha algumas ressalvas possíveis de serem feitas, é trabalho de uma autora consistente em contato íntimo com a história de sua vida e da família. A um festival como Gramado, sempre às voltas com a atenção desmedida a estrelas televisivas, premiar projeto tão pessoal e pontual é uma ótima maneira de encontrar alguma redenção.

*Publicado em "O Tempo" no dia 14.8.2011

OS PREMIADOS

Longa-metragem brasileiro

Melhor montagem: Leonardo Sette por "As hiper mulheres"
Melhor fotografia: Roberto Henkin, por "O carteiro"
Melhor roteiro: Gustavo Pizzi e Karine Teles por "Riscado"
Melhor atriz: Karine Teles por "Riscado"
Melhor ator: Caio Blat por "Uma longa viagem"
Melhor diretor: Gustavo Pizzi, por "Riscado"
Especial do júri: "As hiper mulheres", de Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro
Melhor filme em longa-metragem brasileiro: "Uma longa viagem", de Lúcia Murat

Curta-metragem

Melhor montagem: Mair Tavares e Tina Saphira, por "Um outro ensaio"
Melhor fotografia: Jacques Dequeker, por "Polaroid circus"
Melhor roteiro: Rodrigo John, por "Céu, inferno e outras partes do corpo"
Melhor atriz: Dira Paes em "Ribeirinhos do asfalto"
Melhor ator: José Wilker em "A melhor idade"
Especial do júri: "Rivelino", de Marcos Fábio Katudjian
Melhor diretor: Natara Ney por "Um outro ensaio"
Melhor filme curta-metragem nacional: "Céu, inferno e outras partes do corpo", de Rodrigo John

Longa-metragem estrangeiro

Melhor fotografia: Serguei Saldivar Tanaka, por "La lección de pintura"
Melhor roteiro: Sebastián Hiriart, por "A tiro de piedra"
Melhor atriz: Margarida Rosa de Francisco, por "García"
Melhor ator: Gabino Rodríguez, por "A tiro de piedra"
Melhor diretor: Gustavo Taretto por "Medianeras - Buenos Aires na era do amor virtual" e Sebastián Hiriart, por "A tiro de piedra"
Especial do júri: "Las malas intenciones", de Rosario Garcia-Montero
Melhor filme longa-metragem estrangeiro: "Medianeras - Buenos Aires na era do amor virtual", de Gustavo Taretto

Gramado 2011: "O Carteiro", de Reginaldo Faria

Desde 1984, o ator Reginaldo Faria tenta voltar à direção de filmes, atividade exercida por ele em sete trabalhos a partir de 1969 - ano de seu maior sucesso e um marco da comédia brasileira, "Os Paqueras", que levou 4 milhões de espectadores às salas de exibição. Quase três décadas depois de "Aguenta Coração", o galã de 74 anos retorna ao comando com "O Carteiro", exibido na noite de quinta-feira na competição do 39º Festival de Gramado.

Provavelmente não ao acaso, o filme se ambienta na década de 1980. É como se Faria retomasse a cadeira de diretor do mesmo ponto de onde a deixou, após anos de tentativas frustradas. No período, chegou a quase emplacar pelo menos dois projetos, mas foi barrado por dificuldades financeiras para capitanear produção.

Precisou de um financiamento "externo" para o fluminense de Nova Friburgo enfim realizar o desejo. Faria viabilizou "O Carteiro" a partir da parceria com a produtora TGD e patrocínio do Banrisul, instituição financeira gaúcha. Menos ao acaso ainda, o enredo do filme - escrito pelo próprio realizador - se ambienta num pequeno distrito do interior do Rio Grande do Sul.

Disso se desprende uma comédia romântica quase ingênua e infantil, protagonizada por Cadé Faria (filho de Reginaldo) como um entregador de cartas cujo hobby é violar e ler correspondências alheias. Ele se apaixona pela jovem e desiludida Marli (Ana Carolina Machado), por quem fará ações moralmente questionáveis na ânsia de conquistá-la.

"A violência me cansou, e eu quis fugir dela", disse o ator e diretor, em conversa com jornalistas em Gramado. Um dos filmes mais fortes dirigidos por Faria é "Barra Pesada" (1977), inspirado em peça de Plínio Marcos sobre o submundo corrupto do Rio de Janeiro. "É preciso falar do aspecto humano para tocar as pessoas e a sensibilidade de cada um. Não acho que isso seja impossível no mundo de hoje", frisou.

Sem os elementos de forte clima sexual de "Os Paqueras" (que renderam a Faria a pecha de precursor da pornochanchada), "O Carteiro" prefere seguir rumo mais errático, misturando as relações dos personagens com os desencontros das situações nas quais se envolvem. Curiosamente, o filme evoca outra comédia destrambelhada e igualmente anacrônica exibida em festivais neste ano: "Casamento Brasileiro", mostrado no Cine PE em maio e dirigido pelo veterano Fauzi Mansur, também retornando às câmeras após décadas de afastamento.

Reginaldo Faria é humilde. Sabe ter realizado um filme simples (uns podem chamar de simplório) e reconhece que o fato de estar mais maduro e experiente não é garantia de que vá agradar. Mesmo assim, espera que a visibilidade em Gramado lhe traga alguma oportunidade para o lançamento de "O Carteiro" nos cinemas. "O que eu queria mesmo era fazer para saber se ainda iria amar o que estava fazendo. Isso aconteceu", disse. Pode ser a oportunidade da faceta de diretor de Faria tomar contato com uma plateia que hoje talvez apenas o conheça por seus mais de 30 papéis em novelas na TV Globo.

*Publicado em "O Tempo" no dia 13.8.2011

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Gramado 2011: "Olhe pra Mim de Novo", de Kiko Goifman e Cláudia Priscilla

Um princípio de exaltação tomou conta do debate sobre o documentário "Olhe pra Mim de Novo", exibido na competição do 39º Festival de Gramado na noite de quarta-feira. Os diretores Kiko Goifman e Cláudia Priscilla ficaram incomodados com o teor de algumas perguntas, que pareciam menos discutir o filme do que tirar satisfações com a dupla de realizadores e com Sillvyo Luccio, o transexual masculino que é centro do longa-metragem.

"O politicamente correto é muito chato! Vamos ter um pouco mais de humor com algumas coisas, gente", afirmou Kiko. "Eu sou um cara cheio de cicatrizes feitas por pessoas que sempre acharam o que deve ser certo ou errado", completou Sillvyo, em fala emocionada.

A questão partiu da abordagem generosa de Kiko e Cláudia em relação à figura de Sillvyo Luccio. Formado em letras e funcionário público no Ceará, ele nasceu "em corpo de mulher", como define, e assumiu o gênero masculino há alguns anos - com o uso de prótese peniana e a perspectiva de uma operação de readequação sexual.

Num "road movie" pelo sertão nordestino, Sillvyo vai apresentando sua personalidade à câmera, tanto em depoimentos solo quanto no contato com outras pessoas. Em linguajar popular, ele incorpora a figura piadista e bem-humorada do "macho escroto" - para incômodo de muita gente, que não gostou de algumas colocações do personagem.

"Eu não sou ator. Ali, sou eu mesmo, mostrando um pouco de mim", frisou Sillvyo Luccio, no debate. "Sou, acima de tudo, um nordestino com uma visão de mundo". Talvez tenha sido essa visão de mundo o motivo de tamanha comoção, a ponto de uma cineasta presente ao debate se dizer "desrespeitada" pelo filme, numa estranha e passional mistura de valores e conceitos, da qual "Olhe pra Mim de Novo" estará sob ameaça a cada nova sessão.

Com ânimo mais amenizado, Kiko falou sobre as escolhas dele e de Cláudia Priscilla para abordarem questões como transexualidade, preconceito, genética e maternidade - todas muito fortes no filme. "A Cláudia sempre se interessou por temáticas ligadas ao corpo e à sexualidade", disse.

A codiretora (vencedora do Festival de Paulínia em 2010 com "Leite e Ferro", sobre presidiárias que amamentam seus filhos na cadeia) contou ter feito profunda pesquisa em bancos genéticos do Nordeste e até se deparar com Sillvyio Luccio. "Ele seria um personagem da nossa viagem, mas acabou se tornando o centro", relembrou ela.

Para o próprio Sillvyo Luccio, "Olhe pra Mim de Novo" serviu de catarse e exposição de sua autoproclamada condição de desgarrado, exemplificada por ele nas cenas em que é filmado caminhado por estradas. "Eu sempre andei à margem, com os veículos vindo na minha contramão. Essas imagens (na estrada) são a fotografia do que é a minha vida: a angústia do isolamento de um homem transexual".

*Publicado em "O Tempo" no dia 12.8.2011

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Gramado 2011: "As Hiper Mulheres"

As poucas pessoas presentes no Palácio dos Festivais na noite de terça-feira passaram por uma experiência incrível no contato com o longa-metragem "As Hiper Mulheres", exibido no Festival de Cinema de Gramado. O filme de Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro registra o jamurikumalu, ritual de mulheres indígenas no Alto Xingu (MT). O intuito é tentar preservar cânticos orais que corriam o risco de desaparição.

Todas essas informações são extrafílmicas. Na tela, "As Hiper Mulheres" constrói realidade própria, reencenando o cotidiano de uma tribo que se depara com a iminente morte de uma de suas principais figuras femininas e precisa se organizar para que a memória dela não se perca. Ecos de filmes recentes como "Serras da Desordem" (2006) e "Terra Deu, Terra Come" (2010) se conjugam a lembranças de experiências fundamentais no contato com o outro, vistas em trabalhos de Robert Flaherty ("Nanook, o Esquimó"), F.W. Murnau ("Tabu") e Jean Rouch ("Eu, um Negro").

"Buscamos fazer um filme o menos etnográfico e hipercontextualizado possível", disse Carlos Fausto, antropólogo e codiretor do projeto. "Nosso interesse era falar sobre música, memória e transmissão de conhecimento através do afeto e das relações familiares".

O jamurikumalu fora ritualizado pela última vez na aldeia retratada em "As Hiper Mulheres" em 1982. Neste novo contato, iniciado em 2002 a partir do projeto Vídeo nas Aldeias e com orçamento de um edital do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a equipe de produção tomou contato íntimo com os moradores do lugar e os fizeram criar intimidade com a presença de câmeras e de pessoas não-indígenas. "No próprio real, a matéria ficcional estava presente", frisa Fausto. "Não escrevíamos diálogos, mas pensávamos e preparávamos as cenas, dando instruções aos personagens que estariam nelas para construir um fio dramático".

Nesse sentido, a definição de "ficção" e "documentário" se esvai ao se assistir a "As Hiper Mulheres" - assim como a preconceituosa conotação de "filme de índio", que inclusive circulou entre alguns jornalistas antes da sessão. Há, acima de qualquer pré-impressão, um trabalho elaborado e impactante de encenação, registro e criação de espaço.

Os corpos dos indígenas, a premente sexualidade que emana das figuras femininas da aldeia, o linguajar despojado, a completa disposição em dialogar com a proposta cinematográfica em questão e o maravilhamento do ritual são elementos a atentar num filme de valor especial. "As Hiper Mulheres" está selecionado também para a competição do Festival de Brasília, a ser realizado no fim de setembro.

*Publicado em "O Tempo" no dia 11.8.2011

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Gramado 2011: impressões

Iniciado na última sexta-feira com a exibição fora de competição de "O Palhaço" (segundo longa-metragem dirigido por Selton Mello e devidamente reportado pelo Magazine durante o Festival de Paulínia, em julho), a 39ª edição do Festival de Gramado segue até o próximo sábado com a tradicional dobradinha de filmes brasileiros e latinos. Neste ano, há produções do México, Uruguai, Colômbia, República Dominicana, Chile e Argentina.

Porém, até o momento, algo bastante incômodo vem acontecendo. Dois dos longas latinos foram projetados em DVDs de péssima qualidade. A justificativa da produção é que as cópias em película não chegaram a tempo para a exibição. No intuito de não ficarem de fora, os trabalhos passaram no material que havia sido enviado para a seleção. Isso pode ter prejudicado a fruição dos filmes, mas a organização de Gramado já prepara sessões fechadas para jurados e jornalistas. O público, porém, viu o que viu.

Na noite de ontem, estava prevista uma homenagem a Fernanda Montenegro, agraciada com o Troféu Oscarito. Na tarde de segunda-feira, a atriz deu uma coletiva à imprensa em Porto Alegre, onde está em cartaz com uma peça. Poucos jornalistas puderam se deslocar até a capital para falar com ela. Algumas frases circularam durante o dia de ontem, coletadas pela assessoria de imprensa do festival.

"Muitas pessoas que gosto e admiro já receberam esse troféu: Domingos de Oliveira, Paulo José, Grande Otelo e outros tantos colegas que acreditam na sua arte. Agradeço, de coração mesmo, esse prêmio", disse ela. "Sou uma atriz que ama o que faz e existem tantas outras atrizes e atores que também fazem seu trabalho com amor e porque gostam do que fazem".

O proclamado glamour do Festival de Gramado – que investe R$ 3 milhões no evento – continua forte, mesmo sob muito frio e a chuva que insiste em cair todas as noites, colocando em risco penteados, vestidos e roupas de gala no tapete vermelho. O curioso daqui é o quanto o agito não parece se transferir para dentro do Palácio dos Festivais, com seus pouco mais de mil assentos e onde ocorrem as exibições.

As sessões noturnas costumam estar razoavelmente vazias, e a recepção aos filmes raramente ultrapassa as palmas protocolares. Talvez seja o alto valor do ingresso cobrado pelo festival (em torno de R$ 100) ou simplesmente as tentações da pequena e charmosa cidade da Serra Gaúcha. Sempre há, afinal, a esperança dos turistas de toparem com algum ator ou atriz global comendo em algum restaurante, comprando chocolate ou tomando chimarrão.

*Publicado em "O Tempo" no dia 10.8.2011

Gramado 2011: "País do Desejo", de Paulo Caldas

Por muito tempo, o nome de Paulo Caldas andou lado a lado com o de Lírio Ferreira. Os dois foram responsáveis por "Baile Perfumado", impactante produção pernambucana de 1997 que ajudou a renovar o cinema brasileiro pós-1994. Dali em diante, ambos seguiram parceiros, mas trilharam caminhos próprios - como era antes, quando desenvolviam seus curtas-metragens em Recife desde os anos 1980. Caldas está em Gramado, onde apresentou na noite de segunda-feira, na competição ao troféu Kikito, seu quarto longa-metragem, "País do Desejo".

A surpresa foi grande para quem conhecia a obra anterior de Caldas - em especial seu filme de 2007, "Deserto Feliz", que representou o Brasil numa mostra paralela do Festival de Berlim naquele ano. "País do Desejo" se afasta razoavelmente das questões sociais dos outros trabalhos do cineasta (ainda que não as deixe de lado) e mergulha num melodrama burguês envolvendo um padre em crise de fé (Fábio Assunção) e uma pianista renomada que precisa urgentemente de um transplante de rim (Maria Padilha).

"É o filme mais ‘Paulo Caldas’ que eu já fiz", declarou o cineasta, em conversa com jornalistas na manhã de ontem. A frase veio em resposta a uma crítica negativa feita por um repórter local e serviu para rebater alguns comentários bastante ruins que foram surgindo durante o debate. Caldas estava absolutamente tranquilo, respondendo a tudo e todos com uma inteligência e serenidade que deixavam claros não apenas seu apreço pelo próprio filme, mas também a abertura ao diálogo e às reflexões.

"O que eu queria foi o que eu fiz, e o que quero eu faço", disse. "Assumi os riscos desse trabalho, como assumo em qualquer projeto no qual participo". Caldas se disse um pouco surpreso pela má reação a "País do Desejo", apesar de já acreditar numa divisão de opiniões. "Faço cinema pelos desafios. Num momento em que a produção brasileira se preocupa em falar da miséria e da pobreza, eu sabia que haveria o estranhamento e até o preconceito contra um cineasta de Pernambuco que quisesse tratar de gente rica e do universo da música clássica", afirmou. "Dormi vários dias preocupado com esse filme. Mas eu detestaria repetir qualquer um dos projetos que fiz antes".

Além de "Baile Perfumado" e "Deserto Feliz", Caldas realizou o documentário "O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas" (2000). Apesar de fortemente vinculado a Pernambuco, o diretor de 47 anos nasceu em João Pessoa, capital da Paraíba. Foi em Recife, porém, o início da trajetória cinematográfica. O primeiro filme, o curta "Frustrações, Isto É um Super-8", veio em 1981. Dali em diante, foram outros sete curtas, até chegar a "Baile Perfumado".

No caso de "País do Desejo", Caldas se debruçou no drama do padre José, pároco de uma pequena comunidade de Olinda que entra em conflito com a Igreja. O motivo do embate inserido no roteiro foi explicitamente arrancado do noticiário. Estuprada pelo padrasto, uma garota de 9 anos grávida de gêmeos, moradora do agreste pernambucano, foi legalmente autorizada a fazer um aborto assistido, em 2009. A Igreja excomungou os pais dela e os médicos responsáveis pelo procedimento - mas não o violentador, sob a justificativa religiosa de que "o aborto é pior que o estupro".

No filme de Caldas, a garota tem 12 anos e sofre abusos de um tio. O restante do drama está todo lá, reencenado - e é, inicialmente, o centro das relações conturbadas de José com a arquidiocese. "O projeto estava em andamento quando aconteceu o caso da menina. Inserimos no filme para deixar mais clara a insatisfação do padre com a instituição da Igreja", contou o cineasta.

É o principal elemento social de "País do Desejo". Em cena, a questão soa mais intensa enquanto informação do que como estética aplicada ao filme, que parece pouco desenvolvida. Logo ao romper com a Igreja Católica, José se declara apaixonado pela pianista Roberta - o que soa bastante abrupto dentro da lógica construída até então. Fábio Assunção defendeu o trabalho de Caldas utilizando uma definição do próprio diretor: "É uma história de amor antes do amor acontecer", disse o ator.

*Publicado em "O Tempo" no dia 10.8.2011
*Foto de Gabriela DiBella/PressPhoto

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Sobre censura a "A Serbian Film"

Essa é uma das situações mais patéticas e autoritárias que já testemunhei no mundo das artes. Deve ser a primeira vez que a Justiça brasileira decide alguma coisa na base do puro palpite. Isso está evidenciado desde a primeira sentença de proibição, quando todos os envolvidos na ação assumiram não terem visto o filme, tendo se baseado em "notícias da imprensa". A Justiça agora trabalha a partir de pesquisas no Google?

O que assombra neste caso todo, e em particular na sentença do sr. Ricardo Machado Rabelo, é que as alegações são todas falsas. Não existe nenhuma quebra de artigo algum do Estatuto da Criança e do Adolescente em "A Serbian Film". O artigo 241-C condena o que consiste "simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual".

Se estes nobres juízes tivessem a mínima decência de estudar o objeto de seus julgamentos, saberiam que "A Serbian Film" não "simula" nenhuma cena nem tem "sexo explícito ou pornográfico" de qualquer espécie e muito menos "adultera, monta ou modifica fotografia, vídeo ou outra forma de representação visual". Não vou ficar aqui justificando ou explicando o que o filme faz. Caberia ao senhor juiz avaliar dignamente o que ele proíbe, em vez de se ater ao "afirmado no inicial" ou utilizar o covarde e falso argumento de que o filme provocou celeuma em outros países ou querer nos impor o que ELE considera "a ordem natural e lógica do que é razoável".

Esse assustador resquício de autoritarismo da Justiça brasileira no caso de "A Serbian Film"- que me parece uma questão muito mais política do que judicial - é um perigo iminente e presente de que as criações artísticas podem estar sofrendo seriíssimo risco no Brasil, a partir do momento em que juízes se dão o direito de acatar pedidos a partir de impressões pessoais ou de maldosamente misturarem aspectos de criminalidade da lei penal a objetos de evidente teor criativo e ficcional.

Na verdade me faltam palavras para comentar uma atrocidade dessas. A ironia é que, se os nobres juízes assistissem a "A Serbian Film", perceberiam como eles estão violentando o filme tanto quanto os vilões da trama violentam o protagonista. Nesta história toda, o vilão é a nossa nobre Justiça, enquanto o protagonista somos nós, passivos e absolutamente chocados com os rumos de toda a história.

Do que eu estou falando?
Tem tudo reunido aqui: http://censuranaomg.blogspot.com

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Entrevista com Srdjan Spasojevic, diretor de "A Serbian Film"

O diretor Srdjan Spasojevic está chateado. Diz ficar triste com a contínua controvérsia que seu "A Serbian Film" tem provocado em alguns países - inclusive no Brasil, onde o filme passa por um demorado imbróglio judicial desde a suspensão de sua exibição no Rio de Janeiro, a pedido do DEM, em julho, dentro do RioFan - Festival de Cinema Fantástico.

"É frustrante passar por tudo isso, por essa gente lunática que acha que pode decidir como o mundo deve ser", desabafa Spasojevic, direto da Sérvia, em conversa telefônica com o Magazine. "Essas reações primitivas me assustam bastante".

Aos 35 anos, Spasojevic estreou em longa-metragem com "A Serbian Film", que ganhou no Brasil o subtítulo "Terror sem Limites" e estrearia no circuito comercial hoje, pela distribuidora maranhense Petrini Filmes. Porém, devido a uma ação de Fernando Martins, da Procuradoria da República em Minas Gerais, o Ministério da Justiça interrompeu a análise de classificação etária do filme. Na prática, isso o impede de ser lançado nos cinemas. É a primeira vez, desde 1986, que um filme está barrado pela Justiça brasileira, o que trouxe de volta a assustadora questão da censura prévia a obras de arte no país.

A principal alegação seria de que o longa "induz à pedofilia" e teria ferido o Estatuto da Criança e do Adolescente por conter cenas de sexo envolvendo menores de idade - o que, vendo o filme, sabe-se não ser verdade. Porém, os envolvidos nas ações de veto assumiram não terem assistido ao longa-metragem.

"Sinceramente, eu não esperava tantas reações assim. Tenho consciência de que o filme não é para todo público. Algumas pessoas adoram, outras odeiam. Mas é um filme duro, num tempo em que se tenta impor o politicamente correto às pessoas", diz o cineasta. "E virou um verdadeiro circo, é quase engraçado".

Mesmo com toda a controvérsia, Spasojevic tem orgulho do filme que fez. Adepto do cinema norte-americano dos anos 70 (sem pensar muito, cita nomes como Sam Peckinpah, Walter Hill, John Carpenter e William Friedkin), ele utilizou toda essa base e mais algumas referências para desenvolver o roteiro de "A Serbian Film". Juntou aos seus instintos cinéfilos a própria vivência na Sérvia e fez "o melhor filme que podia", segundo diz.

"A Sérvia é um pequeno país europeu muito conservador. É difícil, aqui, as pessoas enxergarem seus próprios problemas. A religiosidade é forte e, quando alguém comete algo ruim, acha que basta ir à igreja para estar ´purificado´", comenta Spasojevic.

Ele acredita que o personagem central de "A Serbian Film" poderia ser qualquer típico trabalhador europeu. Spasojevic o fez como sendo um ex-astro de filmes pornográficos para servir de metáfora à exploração profissional no país e à pseudofelicidade. "Em vez de lutarem, as pessoas aqui tendem a esconder suas falhas. O que falo no filme é sobre a destruição da família como eixo dessa falsa realidade".

A experiência de ter crescido numa nação marcada por bombardeios da Otan também reafirmou a necessidade de Spasojevic se expressar através do horror. "Não tinha mesmo como sair algo muito bonito".

O cineasta lembra o recente caso do atirador da Noruega, Anders Breivik - responsável por 77 mortes - como um reflexo do choque retratado em "A Serbian Film". "Infelizmente, é o tipo de experiência que estamos vendo", diz. Ironicamente, o filme de Spasojevic foi banido da Noruega bem antes dos ataques de Breivik (que disse, aliás, ser fã de "Dogville", de Lars Von Trier).

"O que eu acho curioso é que toda a violência que acontece em torno do personagem principal do filme está acontecendo com o próprio filme", compara Spasojevic.

*Publicado em "O Tempo" no dia 5/8/2011.

domingo, 7 de agosto de 2011

Melancolia

Alguns realizadores chegam a determinado ponto de suas carreiras e fazem o que bem entendem. Alguns mantêm as mesmas características, outros desenvolvem mais e mais suas obsessões. O dinamarquês Lars Von Trier está na segunda categoria. "Melancolia", novo longa do cineasta, que estreia hoje em Belo Horizonte, é, ao mesmo tempo, uma evolução e um desgarramento do que havia sido "Anticristo" há dois anos.

Von Trier retoma a noção de núcleo familiar como elemento podre da sociedade e desenvolve as relações entre um grupo de personagens a partir do evento de maior "união" possível - o casamento da filha mais nova, interpretada por Kirsten Dunst (vencedora do troféu de melhor atriz em Cannes neste ano).

É a ocasião mais clara para Von Trier destilar um veneno que discretamente vai tomando conta de todos em cena. O símbolo mais evidente do cataclisma que o diretor busca captar é a premissa de que um misterioso planeta (chamado pelos cientistas justamente de Melancolia) se aproxima da Terra. Uns creem numa colisão, outros apenas querem curtir um inesquecível evento natural a ser acompanhado de telescópio.

A sequência inicial já entrega o desfecho do filme, por meio de tom e montagem que muito lembram o começo de "Anticristo" em estilo e teor, ainda que, em "Melancolia", as situações tenham menos efeito causal do que no filme anterior.

Ou seja, o espectador já assiste consciente dos rumos "universais" que o enredo vai tomar. Daí que Von Trier tem plena liberdade para tratar dos rumos "pessoais" do recorte que definiu para servir de reflexo da crise mundial e íntima que estão no centro do filme.

"Melancolia" se divide explicitamente em duas partes, sendo a primeira - mais alegre e colorida, ainda que com rachaduras dentro do microcosmo familiar - uma espécie de prelúdio para a segunda, que já parte da noção de acúmulo do que tinha sido visto antes. Vai variar de cada espectador escolher alguma parte preferida, ou pode-se sempre optar por entender o conjunto como um desdobramento coerente dentro da obra de Von Trier.

É como se "Melancolia" fosse a reunião de "Ondas do Destino", "Dançando no Escuro", "Dogville" e "Manderlay", com pitadas de "Os Idiotas", para se tornar outra coisa. A curiosidade que fica é simples: para onde Von Trier pretende ir depois dessa? Antes de saber, é bom se proteger do impacto de "Melancolia".

*Publicado em "O Tempo" no dia 5/8/2011